Tábata Bergonci
08/02/2017

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Se te perguntassem qual é a molécula fundamental para que a vida possa ocorrer, presente em todos os seres vivos, o que você responderia? Se sua resposta é DNA, você errou. Mas este seria um erro aceitável… Nós aprendemos desde cedo que esta é a molécula que coordena e controla todas as funções vitais. Lemos em todos os lugares que a história do DNA é a história da vida. Nossa existência também depende de proteínas, carboidratos e RNA, mas ninguém diz “está na minha proteína”. E aí eu questiono: é realmente tão menos absurdo dizer que algo “está em meu DNA”?

O primeiro erro ocorre quando nós, biólogos, invocamos o dogma central da biologia, que diz que DNA produz RNA que produz proteínas. Acontece que esse dogma não pode ser chamado “central”. Organismos são sistemas complexos e, consequentemente, não têm centro. Além disso, o dogma não está exatamente correto: essa via na verdade não tem início, meio e fim. Para fazer cada molécula de DNA são necessários RNA, proteína e DNA. O dogma seria mais como um constante looping embebido em uma malha de conexões entre os diversos tipos de moléculas da célula.

Geneticistas costumam usar palavras que agregam superpoderes ao DNA. O DNA “controla”, “regula” e “governa” processos celulares. Isso faz parecer que os genes se “auto-expressam”, como se o DNA tivesse intenção e atividade por si só. Contudo, sabe-se que a expressão gênica é desencadeada por diversos fatores externos à molécula de DNA. O mais correto, talvez, seria descentralizar o DNA em nosso diálogo e utilizar um modelo de interação complexa de sistemas de feedback e propriedades emergentes, dos quais o DNA seria apenas mais um componente.

Um artigo publicado na Science em 2005 [2], por exemplo, mostrou que algumas bactérias podem reproduzir, em um tubo de ensaio, o ritmo circadiano na ausência de DNA e utilizando apenas três proteínas. Juntamente com outros estudos, isso é uma prova de que o constituinte proteico da célula pode ser tamponado contra a variação da transcrição, isolando-se da direta influência genética.

Mas se não o DNA, existe uma molécula da vida? Muitos vírus possuem apenas RNA e proteínas. Existem viróides que possuem apenas RNA. O RNA é a única molécula presente em todas as formas de vida e por várias razões é um melhor candidato para ser considerada molécula principal. RNA e DNA são quimicamente similares, mas com propriedades bastante diferentes. O DNA é uma estrutura pouco flexível e altamente inerte, sendo possível apenas duas modificações em sua estrutura: acetilação e metilação (a base primária da epigenética). O RNA, ao contrário, é estruturalmente flexível, instável e reativo, com mais de 100 modificações químicas possíveis.

O RNA, rebaixado no dogma central a mero molde produtor de proteínas, tem diversas funções estruturais e reguladoras na célula (e estima-se que apenas 1% deles produz proteínas). Sabemos pouco sobre ele, muito porque a instabilidade da molécula torna difícil o seu estudo. Mas existem outras razões… O RNA existe no planeta muito antes do DNA e, provavelmente, antecedeu até mesmo a invenção da célula. Consequentemente, é tão profundamente e estruturalmente embutido em sistemas vivos que removê-lo seletivamente é muitas vezes inviável, devido a sua importância para a sobrevivência celular.

Podemos dizer que o DNA é uma forma especializada de RNA, que evoluiu em molécula estruturalmente rígida e quimicamente inerte para guardar as informações hereditárias de maneira segura. O RNA, enquanto isso parece ser a molécula central em volta de que a vida foi construída.

[1] Crédito da imagem: greyloch (Flickr) / Creative Commons (CC BY-SA 2.0). URL: https://www.flickr.com/photos/greyloch/9121238998.

[2] M Nakjima et al. Reconstitution of Circadian Oscillation of Cyanobacterial KaiC Phosphorylation in Vitro. Science 308, 414 (2005).

Como citar este artigo: Tábata Bergonci. Desconstruindo conhecimento: o DNA não é a molécula da vida… Saense. URL: http://www.saense.com.br/2017/02/desconstruindo-conhecimento-o-dna-nao-e-a-molecula-da-vida/. Publicado em 08 de fevereiro (2017).

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