Antônio Murilo Macedo
12/05/2017

Isaac Newton e sua maçã. [1]
O conceito de massa foi introduzido por Isaac Newton na formulação das leis universais da mecânica no Principia [2]. Em sua interpretação, massa seria uma medida da quantidade intrínseca de matéria em um corpo e seria em princípio independente do volume do corpo. Em contraste, na visão do filósofo René Descartes a extensão seria a única propriedade essencial de um corpo, ou seja, um dado volume sempre teria a mesma quantidade de matéria. A perspectiva newtoniana obviamente prevaleceu, em grande parte pelo indubitável sucesso das diversas aplicações de suas leis da mecânica. Por exemplo, a ideia de atribuirmos uma massa a um objeto pontual, impensável na perspectiva de Descartes, é absolutamente natural na mecânica newtoniana e é usada corriqueiramente na resolução de problemas. Outro aspecto interessante da definição de massa no Principia foi o cuidado que Newton teve em declarar a proporcionalidade entre a massa e o peso de um corpo como uma lei empírica independente. Desta forma, a massa inercial e a massa gravitacional são apresentadas como conceitos distintos. É apenas na teoria da gravidade de Einstein que a igualdade dessas duas massas é elevada ao nível de um princípio fundamental.

Na mecânica newtoniana, em um referencial inercial um corpo na ausência de uma força externa permanece em repouso ou em movimento retilíneo uniforme. No entanto, ao aplicarmos uma força externa, ele acelera no mesmo sentido da força, ou seja, se a força tem sentido da esquerda para a direita, a aceleração também será da esquerda para a direita e, portanto, a velocidade do corpo aumentará progressivamente. Este fenômeno dinâmico nos parece tão natural e intuitivo que às vezes esquecemos da existência de uma hipótese implícita: a massa inercial do corpo é admitida ser positiva. Também é natural perguntarmos: e poderia ser diferente? Curiosamente a possibilidade de objetos com massa inercial negativa foi analisada por diversos físicos teóricos no passado e nenhuma inconsistência matemática foi encontrada, apesar de alguns efeitos dinâmicos previstos parecerem bizarros do ponto de vista do senso comum. Por exemplo, ao aplicarmos uma força externa em um objeto com massa inercial negativa ele acelera no sentido oposto ao da força aplicada, ou seja, a velocidade diminui progressivamente. A pergunta então passa a ser: podemos criar em laboratório as condições necessárias e suficientes para a formação de um objeto com massa inercial negativa? A resposta mais uma vez veio da mecânica quântica.

Em abril de 2017 [3] um grupo de pesquisadores da Universidade do Estado de Washington nos Estados Unidos e colaboradores observaram efeitos de massa inercial negativa na expansão de um tipo especial de fluido quântico produzido com sofisticadas técnicas experimentais. Os efeitos observados foram uma quebra de paridade, instabilidades dinâmicas e autoaprisionamento. O fluido quântico era um condensado superfluido de Bose-Einstein, formado com átomos de rubídio aprisionados a baixíssimas temperaturas em uma armadilha construída com feixes de lasers, cuja principal propriedade é poder fluir sem dissipar energia. Manipulando os spins dos átomos através de lasers, os pesquisadores conseguiram produzir um intervalo na curva da energia em função do momento linear que apresenta uma concavidade oposta à da curva de energia-momento linear de uma partícula normal, o que pode ser interpretado como uma massa inercial efetiva negativa. Ao liberar o fluido da armadilha, foi observada uma expansão assimétrica na qual um dos lados do fluido foi gradativamente parando de se expandir como se tivesse encontrado uma parede invisível, ou seja, como se estivesse se aprisionando. Este efeito inusitado foi atribuído ao fato dos átomos neste lado do fluido terem entrado no regime de massa inercial negativa e, portanto, estarem sendo submetidos a uma aceleração de sentido oposto ao da expansão.

O aparecimento de um objeto com massa inercial negativa em condições controladas de laboratório encerra o debate filosófico e conceitual sobre a consistência física da massa negativa. Mas, como toda boa pesquisa, esta descoberta gera novas e muito mais profundas perguntas. Poderiam fluidos quânticos de massa inercial negativa serem usados para simular em laboratório fenômenos naturais impossíveis de serem feitos diretamente, como a dinâmica no interior de estrelas de nêutrons? Só o futuro dirá, mas os fenômenos observados e o enorme controle experimental das propriedades peculiares deste fluido quântico já são inquestionavelmente muito animadores.

[1] Crédito da Imagem: cea+ (Flickr) / Creative Commons (CC BY 2.0). URL: https://www.flickr.com/photos/centralasian/5565715448.

[2] O Principia é uma obra em três volumes publicada por Isaac Newton em 1687 que contém os fundamentos clássicos da mecânica e gravitação.

[3] MA Khamehchi et al. Negative-Mass Hydrodynamics in a Spin-Orbit-Coupled Bose-Einstein Condensate. Phys Rev Lett 118, 155301 (2017).

Como citar este artigo: Antônio Murilo Macedo. Fluido quântico exibe massa negativa. Saense. URL: http://www.saense.com.br/2017/05/fluido-quantico-exibe-massa-negativa/. Publicado em 12 de maio (2017).

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