Bruno Carneiro da Cunha
05/06/2017

Composição mostra a colisão entre duas galáxias no “aglomerado bala”. Graças às técnicas de imagem usando lentes gravitacionais, consegue-se medir a distribuição de matéria bariônica usual (em vermelho), e da matéria escura (em azul), separadamente. [1]
Já comentamos neste espaço os sucessos e limites do modelo padrão de partículas, e os esforços no sentido de estudar o que existe de mais fundamental, e de mais preciso, nos constituintes da matéria.

Contudo, uma aplicação das ideias formativas do modelo padrão em outra área gerou uma revolução na maneira como encaramos o universo. Em meados da década de 1940, George Gamow, físico ucraniano, começou a estudar a então controversa teoria do big bang. Gamow já havia conseguido notoriedade pelos seus trabalhos sobre o decaimento beta e evolução estelar, este último com um então jovem e promissor físico teórico pernambucano chamado Mário Schenberg. Gamow defendia que o estado inicial do universo como previsto pelo big bang não apenas era denso, mas também muito quente, e que as ideias formadas no estudo da física nuclear poderiam ajudar na (re)construção de como era realmente o universo no seu início.

O jovem George Gamow. [2]
Assumindo resultados formais de Friedmann, Lemâitre, Robertson e Walker, pioneiros no estudo das equações da relatividade geral para a dinâmica do universo, Gamow chegou à noção do que agora é conhecido como “hot big bang”: um universo inicialmente dominado por radiação, que, absorvida pelas partículas elementares, gerou toda a matéria que conhecemos (prótons e nêutrons), em um processo chamado bariogênese (literalmente, “geração de massa”). Gamow deixou a seu estudante Ralph Alpher a tarefa de calcular numericamente a proporção de elementos gerados: hidrogênio, hélio e lítio. Sempre dado à brincadeiras — o efeito de redução dramática de energia de estrelas em estágios finais de desenvolvimento foi batizado por ele e Schenberg por “efeito URCA” em homenagem ao cassino do bairro homônimo do Rio de Janeiro — Gamow colocou o nome de Hans Bethe no famoso artigo “The Origin of Chemical Elements”, completando a lista de autores: Alpher, Bethe e Gamow. Apesar das críticas aos detalhes, o artigo teve uma repercussão imensa devido ao seu sucesso em descrever as abundâncias relativas dos elementos leves.

Foi o início de muitas interações entre física de altas energias e cosmologia, que resultou em uma profunda mudança na percepção da história do universo. Fenômenos de astrofísica, como supernovas, quasares e flutuações de emissões em estrelas de nêutrons podem ser modelados e hoje comparados com os experimentos. Em cosmologia, a própria composição do universo pode ser estudada.

Do ponto de vista de cosmologia, os detalhes da composição não importam muito. Experimentos como o COBE, o WMAP e o Planck só conseguem distinguir dois parâmetros da matéria que compõe o universo em larga escala: sua densidade de energia e sua pressão intrínseca. Mesmo com tão pouca informação pode-se inferir a partir destes a composição global do universo a partir da comparação com os modelos — alguns com confirmações independentes, outros não. Dentro dos modelos com confirmação independente, temos para a composição do universo “poeira” — ou “matéria” — “radiação” — ou “energia” — e “alguma outra coisa”. Não, “alguma outra coisa” não é um termo técnico, e vamos voltar a ela no final deste artigo.

Claro, do ponto de vista da relatividade, tudo é energia, assim as categorias precisam de algum esclarecimento. “Poeira” é todo o tipo de energia que pode ficar “parada”: essencialmente (quase) tudo o que tem massa. Massa é, afinal de contas, energia em repouso. A “radiação”, por outro lado, não pode ficar parada: ela sempre se move à velocidade da luz. Ao contrário da poeira, ela sempre tende a se expandir. Por isto, em um universo dinâmico, a radiação sempre se dilui mais rapidamente que a poeira.

Assim, se no passado remoto havia uma maior concentração de radiação no universo, temos que, com sua expansão, a concentração vai diminuir rapidamente, até que hoje tenhamos uma concentração relativamente maior de poeira. Este foi o ponto de partida de Gamow na determinação da abundância dos elementos leves. E, por um acaso, o momento da história do universo em que as duas concentrações eram iguais calhou de (quase) coincidir com o momento que o universo se resfriava o suficiente para a formação dos elementos atômicos. Na passagem, o universo ficou eletricamente neutro, e assim transparente à luz, e estruturas como a radiação cosmológica de fundo foram formadas e deixaram de interagir eletromagneticamente com o resto do universo.

Seguindo a evolução dos dois tipos de energia, poeira e radiação, podemos usar as equações de Einstein para prever o quanto cada uma das duas contribui para a composição do universo atual. E, graças a observações feitas por satélites dedicados, este parâmetros podem ser medidos. Qual não foi a surpresa quando, no ano 2003, o WMAP mediu matéria demais. Seis vezes mais, para ser exato. O que quer que componha esta matéria — que compõe, junto com a matéria “usual”, chamada bariônica,  menos de 30% da densidade de energia total do universo — não pode interagir com o campo eletromagnético pois do contrário a predição sobre a abundância dos elementos leves estaria errada. Este tipo de matéria foi chamada de “matéria escura”, talvez por falta de alternativa melhor. E sim, este é um termo técnico.

É, talvez, o maior mistério da ciência fundamental.

Dentre os vários modelos propostos para descrever a matéria escura, o que mais perto nos toca são as chamadas WIMPs. O acrônimo significa partícula massiva fracamente interagente, e propõem a existência de partículas que, bem, não interagem com o resto das partículas do modelo padrão a não ser pela gravidade. Por essa interação ser tão fraca, especialmente quando comparada com as outras forças fundamentais da natureza, temos aqui não um problema de detecção por causa da energia dos produtos, mas do que os físicos de aceleradores chamam de luminosidade.

Análise do experimento FERMI-LAT mostrando um candidato para WIMP com energia de aproximadamente 130 GeV. Após estudos posteriores mostrou-se que a discrepância entre a linha medida (em azul) e a linha predita (em vermelho) era flutuação estatística. [3]
Assim, para detectá-las, não adianta criar um novo acelerador capaz de energias mil ou um milhão de vezes maior que o LHC. Seria mais útil um que criasse feixes mais densos — ou luminosos — de forma a ter mais chances de detectar uma partícula WIMP, mesmo que a baixa energia. Algumas das propostas mais promissoras no estudo de matéria escura prevê o uso de detetores de neutrinos (que também interagem muito fracamente com as outras partículas do modelo padrão) para este fim, como o MiniBooNE no Fermilab em Chicago ou como IceCube na Antártica. Uma nova leva de detetores dedicados — embora ainda usando o mesmo design dos detetores de neutrino — como o XENON1T, DEAP3600 estão com os primeiros resultados previstos para 2017, e detetores maiores como o DARWIN estão sendo propostos.

Enquanto isso, os melhores dados vêm de estudos astronômicos. Há uma ampla gama de experimentos: os baseados em detetores de neutrinos cosmológicos, como o ANTARES, os de raios gama como os telescópios MAGIC, HESS e VERITAS e o experimento LAT baseado no satélite Fermi; e, finalmente, os de satélites detetores de raios X como XMM-Newton e Chandra. Estes são sensíveis a um espectro muito maior de partículas WIMPs, mas por outro lado sofrem da falta de controle de todas as variáveis envolvidas: vezes ou outras um “candidato a matéria escura” é apresentado, para depois ser descartado como flutuação estatística (Ver [3]).

Apesar dos percalços, houve uma construção de consenso de que a matéria escura realmente existe no universo: modelos alternativos para explicar os efeitos astronômicos e cosmológicos atribuídos a ela têm explicações plausíveis, mas ou elas são especiais — no sentido que usam modelos que não se aplicam em situações similares — ou finamente ajustadas — no sentido que precisam de uma escolha muito especial dos parâmetros para concordarem com o experimento. Para mais detalhes, veja [4]. Como sempre acontece em cosmologia e astrofísica, esta construção de consenso nunca é total ou rápida. A descoberta de uma partícula para a matéria escura poderia ser o tipo de fator decisivo que os físicos de partículas ou da matéria condensada estão acostumados. De qualquer forma, seria mais um feito notável de interação entre a física de partículas e a astrofísica, e um passo adiante em resolver o mistério da composição do universo.

Com o advento da cosmologia de precisão, onde os parâmetros como a densidade de energia do universo são medidos com erros de 0,1% ou menores, modelos que explicam apenas parcialmente os fenômenos são cada vez mais preteridos em prol de modelos universais. O consenso sobre o modelo pode ser apenas o início da jornada da compreensão, como por exemplo na “alguma outra coisa” aludida acima: ela é conhecida por “energia escura”, e encaixar esse modelo na teoria vigente coloca desafios teóricos muito mais difíceis que apenas postular a existência de partículas. Voltaremos a esse ponto no futuro.

[1] Crédito da imagem: NASA Finds Direct Proof of Dark Matte. URL:  http://chandra.harvard.edu/press/06_releases/press_082106.html.

[2] Imagem obtida de Russian-American Scientists Honor George Gamow (1904-1968). URL: https://www.aps.org/publications/apsnews/updates/gamow.cfm.

[3] L Bergstrom. The 130 GeV Fingerprint of Right-Handed Neutrino Dark Matter. Phys Rev D 86, 103514 (2012). [Disponível em http://arxiv.org/abs/arXiv:1208.6082].

[4] TM Undagoitia and L Rauch. Dark matter direct-detection experiments. J Phys G 43, 013001 (2016). [Disponível em https://arxiv.org/pdf/1509.08767.pdf].

Como citar este artigo: Bruno Carneiro da Cunha. À procura da matéria escura. Saense. URL: http://www.saense.com.br/2017/06/a-procura-da-materia-escura/. Publicado em 05 de junho (2017).

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