Agência FAPESP
05/04/2018

Plasmodium falciparum. [1]
Pesquisadores do Reino Unido e dos Estados Unidos começaram a desvendar os mecanismos pelos quais o parasita causador da malária regula uma etapa crucial do seu ciclo de vida: o momento em que ele para de se reproduzir dentro das células sanguíneas do hospedeiro humano – causando sintomas como febre, dores e calafrios – e assume uma forma sexuada conhecida como gametócito, capaz de infectar o mosquito vetor.

De acordo com um estudo publicado recentemente na revista Cell, a queda nos níveis plasmáticos de um fosfolipídeo chamado lysofosfatidilcolina parece funcionar como um sinal de que é hora de “abandonar o barco” e buscar um novo hospedeiro.

O estudo foi apresentado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP), pelo professor de Parasitologia Molecular da Universidade de Glasgow (Escócia) Matthias Marti. A palestra ocorreu em março, durante a São Paulo School For Advanced Science In Cell Biology (SPCell), evento apoiado pela FAPESP por meio da modalidade Escola São Paulo de Ciência Avançada.

“O entendimento de como ocorre a transformação do parasita em gametócito pode apontar alvos para o desenvolvimento de fármacos capazes de bloquear a transmissão da doença”, disse Marti em entrevista à Agência FAPESP.

Os resultados obtidos até o momento são de experimentos feitos in vitro com protozoários da espécie Plasmodium falciparum, responsável pela maioria dos casos de malária em humanos e também pelos mais graves. O objetivo era investigar quais fatores no organismo hospedeiro poderiam alertar o parasita de que seria o momento de avançar em seu ciclo de vida.

“Há muitas hipóteses para explicar o fenômeno, como a existência de fatores genéticos ou de moléculas liberadas pelo sistema imune humano. Nós estávamos desconfiados de que poderia ser o estado nutricional do hospedeiro. Ou seja, uma vez que o parasita percebe que há disponibilidade limitada de nutrientes, ele busca meios de ser transmitido para outro organismo”, disse Marti.

Para testar sua teoria, o britânico realizou uma série de ensaios em colaboração com Jon Clardy, da Escola de Medicina Harvard, nos Estados Unidos, e outros colaboradores.

Os cientistas observaram que quando o soro sanguíneo convencional era adicionado à cultura de parasitas, nenhum indivíduo se transformava em gametócito e todos continuavam a se reproduzir normalmente nas células sanguíneas. Porém, quando a cultura era tratada com um soro que já tinha previamente sido exposto aos parasitas, eles passavam a se reproduzir mais lentamente e uma parte dos indivíduos se transformava em gametócito.

“Certamente algo importante estava faltando, então decidimos fracionar o soro e testamos seus componentes um a um nas culturas”, contou Marti.

Inicialmente, os pesquisadores imaginaram que o nível de glicose no sangue seria o fator-chave para a mudança de fase parasitária. No entanto, os experimentos mostraram que mais gametócitos se formavam na ausência da lysofosfatidilcolina – um fosfolipídeo bastante abundante no sangue humano e essencial para a síntese de membranas celulares.

“Nossos testes mostraram que esse fosfolipídeo é rapidamente sequestrado pelo parasita, que quebra a molécula e usa seus componentes para sintetizar a membrana de novos parasitas. Na falta do nutriente, cerca de 30% dos protozoários que infectam as células sanguíneas se transformam em gametócitos. Os outros 70% passam a se replicar mais lentamente”, explicou Marti.

Segundo o pesquisador, o nível de lysofosfatidilcolina no sangue normalmente cai cerca de cinco vezes durante qualquer processo infeccioso importante – sendo esse fator considerado um marcador inespecífico de inflamação. No caso da malária, o fosfolipídeo parece funcionar como um sensor ambiental para o parasita

“O Plasmodium se desenvolve em um ambiente em constante alteração – tanto no hospedeiro humano quanto no mosquito. Ele precisa colher amostras do ambiente com frequência e ajustar seu metabolismo quando necessário”, disse Marti.

O cientista acredita que o mesmo mecanismo esteja presente no caso da espécie Plasmodium vivax, principal responsável pelos casos de malária no Brasil. No entanto, não foi possível testar a hipótese no laboratório porque essa espécie não sobrevive em cultura.

Lacunas no conhecimento

Entender como exatamente a ausência de lysofosfatidilcolina resulta na transformação em gametócito é um dos objetivos atuais do grupo coordenado por Marti. Segundo o cientista, porém, há várias outras questões ainda em aberto.

“Quando tiramos o fosfolipídeo do soro, apenas uma parte dos parasitas avança no ciclo de vida. Por que não todos? Como é decidido quais indivíduos vão se transformar em gametócitos e quais vão permanecer se reproduzindo assexuadamente? É possível que seja um processo aleatório ou que existam outras moléculas no meio extracelular regulando o processo. Não entendemos ainda”, disse o pesquisador.

Outra possibilidade futura é avaliar se o tipo de dieta do hospedeiro altera os níveis de lysofosfatidilcolina e se isso influencia no processo infeccioso ou na transmissão do parasita. Também é possível olhar em populações humanas como a variação no nível do fosfolipídeo durante a infecção impacta o processo de transmissão.

“Duas das enzimas usadas pelo parasita para metabolizar essa molécula já são alvos conhecidos de drogas, que estão atualmente em fase de ensaios clínicos. A nova descoberta abre a possibilidade de fazer experimentos mais direcionados”, comentou Marti.

Sensores do microambiente

Para a professora da FCF-USP e organizadora da SPCell, Celia Garcia, os estudos conduzidos por Marti oferecem uma grande contribuição para o entendimento dos mecanismos de sinalização e comunicação do Plasmodium com o microambiente do hospedeiro durante o estágio de gametócito.

Em seu laboratório, Garcia coordena um esforço complementar: entender como o parasita percebe o microambiente do hospedeiro durante o período de desenvolvimento dentro do glóbulo vermelho.

“O estudo da sinalização celular na relação Plasmodium-hospedeiro deu um salto nos últimos anos e vários trabalhos vêm sendo publicados por diversos laboratórios, reforçando a relevância deste conceito de sensores de microambientes para regular aspectos do ciclo de vida do parasita da malária, o que era impensável e criticado anos atrás”, disse a pesquisadora.

O artigo Lysophosphatidylcholine Regulates Sexual Stage Differentiation in the Human Malaria Parasite Plasmodium falciparum, de Matthias Marti, Jon Clardy e colaboradores, pode ser lido em: www.cell.com/cell/fulltext/S0092-8674(17)31242-4. [2]

[1] Crédito da imagem: NIAID (Flickr) / Creative Commons (CC BY 2.0). https://www.flickr.com/photos/niaid/14550113162.

[2] Esta notícia científica foi escrita por Karina Toledo.

Como citar esta notícia científica: Agência FAPESP. Parasita da malária usa sinais do ambiente para regular ciclo de vida. Texto de Karina Toledo. Saense. http://www.saense.com.br/2018/04/parasita-da-malaria-usa-sinais-do-ambiente-para-regular-ciclo-de-vida/. Publicado em 05 de abril (2018).

Notícias científicas da Agência FAPESP Home