Agência FAPESP
24/05/2018

Fábrica de Ferro de São João de Ipanema em Sorocaba, província de São Paulo, 1884. [1]
No dia 7 de novembro de 1831, o senado imperial brasileiro promulgou uma lei abolindo o tráfico de escravos. Após uma série de tratados, foi a resposta dos dirigentes do país à forte pressão inglesa pelo fim do comércio escravista.

Comissões mistas – inglesas e brasileiras – vigiariam os portos de partida e chegada e os africanos eventualmente resgatados nos navios que desrespeitassem a lei deveriam prestar serviços ao Império na condição de “aprendizes” durante 14 anos, findos os quais seriam emancipados. Tal arranjo jurídico ficou conhecido como “lei para inglês ver”. Foi mais uma manobra diversionista das elites brasileiras, tradicionalmente avessas a qualquer tipo de concessão. O Estado utilizou, sim, os trabalhadores apreendidos em obras públicas ou privadas. Mas a propalada emancipação jamais se efetivou.

Preenchendo uma persistente lacuna na historiografia brasileira, um estudo investigou recentemente as condições de vida e trabalho desses africanos que a lei proclamava livres, mas que, na prática, pouco diferiam dos demais escravos.

Conduzido por Mariana Alice Pereira Shatzer Ribeiro, o estudo apoiado pela FAPESP resultou no livro Entre a fábrica e a senzala: um estudo sobre o cotidiano dos africanos livres na Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema – Sorocaba – São Paulo (1840-1870), que também teve auxílio da FAPESP para publicação.

“A identificação desses ‘africanos livres’ como trabalhadores compulsórios é bem recente – coisa dos últimos 20 anos. Alguns foram enviados a estabelecimentos públicos, como a Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema, em Sorocaba, na província de São Paulo. Outros foram destinados a particulares. Seus cotidianos pouco ou nada diferiam daqueles dos escravos. Foi o que pude demonstrar a partir dos relatórios da administração da referida fábrica”, disse Ribeiro à Agência FAPESP.

Fundada por D. João VI pouco depois da chegada da corte portuguesa ao Brasil, a Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema teve uma importância muito grande ao longo do século 19. De panelas de ferro a máquinas para engenhos de açúcar, de equipamentos agrícolas para as fazendas de café a munições utilizadas na Guerra contra o Paraguai, a fábrica abasteceu o país com um sem-número de objetos.

“Nela, havia três categorias de trabalhadores braçais: escravos, assalariados (brasileiros ou imigrantes alemães ou suecos) e ‘africanos livres’. Assim como os escravos, os ‘africanos livres’, trabalhadores compulsórios, moravam na própria fábrica, em senzalas improvisadas”, disse Ribeiro.

Embora os dados disponíveis não tenham possibilitado um levantamento quantitativo ano a ano, alguns números possibilitam comparar os respectivos contingentes. Em 1846, havia na fábrica 166 escravos. E, em 1849, 117 ‘africanos livres’.

“Escravos e ‘africanos livres’ dividiam os mesmos espaços; estabeleciam, muitas vezes, relações matrimoniais; e eventualmente participavam juntos das numerosas fugas. Levantei oito casos de casamentos entre africanos ‘livres’. Tais casamentos tinham o apoio da administração da fábrica, inclusive com a vinda de padres da região para conduzir a cerimônia, porque esta era uma estratégia para fixar os trabalhadores e evitar a evasão”, disse Ribeiro.

“O trabalho exaustivo, os maus-tratos e a alimentação precária impulsionavam as fugas. Eram muito raras as fugas de mulheres. Só encontrei um episódio reportado na documentação. Uma possível causa para isso era o fato de as mulheres disporem de condições de trabalho um pouco menos extenuantes, seja na lida agrícola, no trato de animais ou no serviço doméstico. O trabalho mais pesado, na derrubada e queima de árvores para a produção de carvão, na fundição do minério de ferro e na moldagem das peças, era feito por homens. Outro possível motivo era o fato de as mulheres terem, muitas vezes, filhos pequenos para cuidar, o que dificultava a fuga. Muitos que fugiam eram recapturados e depois voltavam a fugir. Encontrei casos de escravos ou ‘africanos livres’ que tentaram ir para o Rio de Janeiro; outros que escaparam para a cidade de São Paulo, capital da província; outros que permaneceram nas cercanias de Sorocaba. Mas nenhum registro de quilombo na região”, disse.

A historiadora conta que também não encontrou qualquer documento reportando a adesão ou o apoio dos assalariados às fugas. Trabalhadores efetivamente livres e trabalhadores compulsórios viviam em situações diferentes, separados pelas barreiras da cor da pele, da referência cultural e do tratamento diferenciado recebido.

Um tópico especialmente estudado, que resultou em todo um capítulo do livro, foi a condição de saúde dos trabalhadores compulsórios. “Há registros de muitas mortes prematuras na fábrica. A carência alimentar, as longas horas de trabalho, muitas vezes sob a chuva ou sob o sereno, as péssimas condições de higiene eram fatores predisponentes. Disenterias, gripes, pneumonias, tuberculoses, varíolas, acidentes de trabalho estavam entre as principais causas dos óbitos. Eram frequentes também os casos de mutilação causados por acidentes nos fornos ou nas máquinas. Os ‘africanos livres’ recebiam apenas duas mudas de roupa por ano. No calor ou no frio, sob o sol ou sob a chuva, na lida ou nas horas destinadas ao descanso, as roupas eram as mesmas”, disse Ribeiro.

Informações como essa possibilitaram à autora ultrapassar a impessoalidade dos números e vislumbrar a vida real das pessoas. “Apesar da escassez dos registros, procurei individualizar tanto quanto possível os sujeitos pesquisados: levantar seus nomes, idades, origens étnicas, funções, doenças etc.”, disse.

A fábrica Ipanema era a menina dos olhos de D. Pedro II, que a visitou várias vezes. Com a proclamação da República, o estabelecimento teve uma história atribulada: fechou, reabriu, mudou de função várias vezes. Na década de 1980, durante a ditadura civil-militar, parte de suas terras passou a abrigar instalações secretas destinadas ao desenvolvimento de reatores para um submarino nuclear brasileiro.

No início da década seguinte, um pedaço da área foi ocupado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Quatro dias depois, em 20 de maio de 1992, um decreto transformou um enclave de mais de 5 mil hectares na Floresta Nacional de Ipanema, destinada a proteger uma preciosa biodiversidade que compreende 343 espécies de aves, 27 espécies de répteis, 36 espécies de anfíbios, 37 espécies de peixes e 69 espécies de mamíferos.

“As ruínas da antiga fábrica encontram-se tombadas pelo Patrimônio Histórico. Quem visita é informado sobre os europeus que por lá passaram – com destaque para o engenheiro metalurgista alemão Friedrich Ludwig Wilhelm Varnhagen, responsável pela construção dos altos-fornos. Isso é muito bom, sem dúvida. Mas pouco se diz sobre os escravos e os ‘africanos livres’ que viveram e trabalharam no estabelecimento”, disse Ribeiro.

Segundo ela, seu livro também foi inspirado pelo desejo de resgatar e homenagear a memória desses trabalhadores compulsórios, cujos nomes e trajetórias a história oficial local procurou apagar. [2] [3]

[1] Crédito da imagem: Julio Durski – LAGO, Pedro Correa do. Coleção Princesa Isabel: Fotografia do século XIX. Capivara, 2008. Domínio público. https://pt.wikipedia.org/wiki/Economia_do_Imp%C3%A9rio_do_Brasil#/media/File:F%C3%A1brica_ferro_Sorocaba_1884.jpg.

[2] O texto completo deste trabalho está no livro: MAPS Ribeiro. Entre a fábrica e a senzala: um estudo sobre o cotidiano dos africanos livres na Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema – Sorocaba – São Paulo (1840-1870). Alameda (2017).

[3] Esta notícia científica foi escrita por José Tadeu Arantes.

Como citar esta notícia científica: Agência FAPESP. Escravidão na fábrica de ferro. Texto de José Tadeu Arantes. Saense. http://www.saense.com.br/2018/05/escravidao-na-fabrica-de-ferro/. Publicado em 24 de maio (2018).

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