Antônio Murilo Macedo
17/02/2019

Foto ilustrativa de escaninhos clássicos. [1]
Escaninhos são objetos tão comuns no dia-a-dia de trabalho em escritórios, repartições e universidades que raramente prestamos atenção neles, exceto quando alguma coisa que deveria estar lá, por alguma razão, não está. Pensamos sempre no pior: alguém levou por engano, o objeto se extraviou no correio, etc. Imagine a seguinte experiência. Você pede a seu colega para deixar panfletos nos escaninhos da repartição, mas exige que ele em hipótese alguma coloque mais de um panfleto em um escaninho e também pede que ele não deixe escaninhos sem panfletos. Obviamente, para realizar a tarefa o número de panfletos entregues a seu colega deve necessariamente ser igual ao número de escaninhos. Para tornar o problema mais interessante, suponha que você sem perceber entregou um panfleto a mais que o número de escaninhos. Em nosso mundo macroscópico, onde valem as leis clássicas da física, a tarefa é claramente impossível. Em outras palavras, pelo menos um escaninho vai conter mais de um panfleto, se todos forem distribuídos. E no mundo microscópico, onde regem as leis da física quântica?

Surpreendentemente, existe um fenômeno quântico, denominado o “efeito escaninho” ou “pigeonhole effect” (em inglês), segundo o qual a tarefa descrita acima é perfeitamente realizável. Vamos tentar explicar como isto é possível. Para facilitar a descrição, consideraremos apenas três partículas, de rótulos 1,2 e 3, e dois estados, que chamaremos de A e B. Na física quântica é possível colocar uma partícula em um estado de superposição combinando os estados A e B de modo que a partícula, apesar de não estar em nenhum dos dois, poderia ser observada em A ou B com alguma probabilidade. Na prática, isto significa que se prepararmos um grande número de partículas neste estado de superposição usando procedimentos idênticos, nas subsequentes observações veríamos uma certa fração de partículas no estado A e o restante no estado B. Para um número muito grande de observações, esta fração é essencialmente igual à probabilidade da partícula preparada em superposição estar no estado observado. É assim que probabilidade é usualmente interpretada na física quântica. Um ponto sutil: a escolha do estado a ser medido e selecionado é do experimentador e não precisa necessariamente ser A ou B. Uma outra superposição de A com B também é uma escolha válida para uma medição. É importante ter em mente que após a medição a partícula estará no estado selecionado. Na verdade, é assim que estados são preparados em física quântica: através de medições. Imagine agora que as três partículas foram colocadas independentemente no mesmo estado de superposição entre A e B, que chamaremos de estado (123). O sistema então é observado escolhendo um novo estado de superposição para cada partícula, de modo que podemos selecionar os eventos que produziram o novo estado (1’2’3’), que é diferente do original apenas por uma fase em A ou B. A questão agora é se podemos determinar se pelo menos 2 partículas estão nos estados A ou B, sem que seja necessário sabermos qual. A resposta é sim, mas ela exige um tipo muito especial e sofisticado de medição não invasiva.

Em um artigo muito recente [2], um grupo de cientistas chineses realizou uma verificação experimental do efeito escaninho quântico. O sistema consistiu de três fótons que foram transmitidos por dois canais de polarização que produziam estados de polarização horizontal e vertical, que fizeram os papéis dos estados A e B da descrição acima. A principal novidade do artigo foi a execução da verificação não invasiva da existência ou não de pelo menos duas partículas no mesmo estado de polarização (horizontal ou vertical) que foi feita por um detector quântico no regime de medição fraca. A conclusão foi que nenhum evento indicou a existência de 2 partículas no mesmo estado de polarização e, portanto, o experimento verificou positivamente o efeito dos escaninhos quânticos. Os autores também perceberam que aumentando a intensidade da medição do detector quântico, o efeito desaparece em virtude de efeitos de retroação do detector no sistema.

Ainda é muito cedo para analisarmos os possíveis desdobramentos deste experimento nas áreas de informação quântica e computação quântica, mas é divertido constatar que a teoria quântica continua a nos surpreender com efeitos que são claramente impossíveis na escala macroscópica das leis da física clássica. A sutileza do efeito, que só pode ser observado com alta redução da retroação do detector no sistema, mostra que com o avanço da tecnologia de medição novas surpresas poderão aparecer no domínio da física quântica.

[1] Crédito da Imagem: Owen Massey McKnight, Flickr, CC BY-SA 2.0, https://www.flickr.com/photos/addedentry/3273096118.

[2] Ming-Cheng Chen et al. Experimental demonstration of quantum pigeonhole paradox. PNAS 116, 1549 (2019).

Como citar este artigo: Antônio Murilo Macedo. Escaninhos quânticos. Saense. http://saense.com.br/2019/02/escaninhos-quanticos/. Publicado em 17 de fevereiro (2019).

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