Jornal da USP
21/10/2021

Fragmentos ósseos escavados na Lapa do Santo, em Minas Gerais [1]

Um punhado de cabelo enroscado em um pente de baleia de quatro mil anos, congelado na Groenlândia, daria origem, décadas depois de encontrado, a uma nova era no estudo do passado humano, agora expandido pelo conhecimento da genética. É verdade que, ao lidar com vestígios de povos antigos, a arqueologia já suscitava – ou deveria – diversas preocupações éticas. Aí incluídas o direito das populações tradicionais a esses objetos, a importância do trabalho com pesquisadores da região – e não apenas estrangeiros fazendo “pesquisa de helicóptero”-, e o cuidado com o destino dos materiais manipulados. Mas a partir da publicação pela primeira vez, em 2010, de dados de DNA humano antigo, novas problemáticas surgiram. Ao perceber a falta de diretrizes éticas para executar este tipo de estudo, que fossem mais abrangentes e levassem em conta diversidades culturais, um grupo de pesquisadores resolveu elaborar, depois de muita discussão, uma lista de princípios éticos para orientar as melhores práticas. Os princípios estão descritos em artigo que acaba ser publicado na revista Nature, assinado por autores de 31 países.

Uma dessas diretrizes diz que os pesquisadores devem se envolver com as partes interessadas e garantir o respeito e a sensibilidade às perspectivas das mesmas. Representante brasileira entre os autores, a professora do Instituto de Biociências (IB) da USP Mercedes Okumura diz que o princípio é propositalmente genérico, porque as partes variam com o contexto. Mesmo que frequentemente incluam populações indígenas, a realidade destes povos é bem diferente em cada país. Por exemplo, no México já existe uma regulamentação que inclui as comunidades tradicionais. Já no Brasil, “a maioria dos grupos indígenas tem problemas ainda com direitos básicos, como a demarcação de terras. Isso parece muito mais urgente do que opinar sobre o destino de materiais arqueológicos. Claro que tudo é muito importante, mas há países onde alguns direitos mínimos já foram garantidos, e esses grupos ficam um pouco mais tranquilos para tentar lidar com outras questões”.

Além disso, o Brasil é um caso complexo porque, diferentemente de outros locais, aqui os materiais arqueológicos são patrimônio da União. “Isso acaba prejudicando o acesso e o controle de grupos indígenas a possíveis materiais arqueológicos com os quais eles tenham alguma identidade. Embora, é claro, o pesquisador deva tentar engajar e incluir estes grupos ou quaisquer outras comunidades interessadas por outros meios”, aponta.

Outro ponto importante é a recomendação para incluir pesquisadores da região de origem do material que se estuda. Muitas vezes não está claro quem são as partes interessadas, e que deveriam ter direito a opinar sobre o uso daquele material. “Há locais onde há disputas entre grupos locais. De repente você está incluindo um grupo ao preço de excluir outro, alimentando conflitos e dando um certo poder a determinado grupo, mesmo que não intencionalmente”, diz Mercedes Okumura. Ela cita ainda o caso da Europa, onde certos grupos e nações têm se utilizado dos dados genéticos para justificar determinadas decisões políticas ou atitudes em relação a outros. “Mesmo que seja algo confuso, pesquisadores locais têm uma visão um pouco mais clara do que pode ou não pode ser feito naquele contexto”, explica.

“Pesquisa de helicóptero”

Mercedes conta que, nessa área, é o grupo de países conhecido como “Norte Global” (América do Norte, Europa e Austrália) que detêm o controle sobre a maioria dos projetos, e que existe um incômodo de que ele acaba impondo suas ideias e agendas de pesquisa ao restante. “Há uma crítica de que esses pesquisadores estrangeiros, que têm o controle e recursos, fazem o que se chama de ‘pesquisa de helicóptero’. É basicamente o estrangeiro vir aqui, pegar os materiais e levar embora, não incluindo nessas pesquisas museus, universidades e a própria comunidade local, e também não deixando nada em termos de formação de recursos humanos.”

Os Estados Unidos, por exemplo, já há décadas têm o NAGPRA [Lei de Proteção e Repatriação de Túmulos de Nativos Americanos, na sigla em inglês], que acabou moldando o modo como se faz ciência com remanescentes humanos. “Ele é totalmente voltado para grupos indígenas, o que, no contexto estadunidense, pode ser uma boa solução, mas que realmente não funciona direito para outros. Muitas vezes a gente vai escrever artigos sobre DNA antigo da América Central, África ou América do Sul e ele retorna com o revisor dizendo, ‘ah mas você não segue os guias, as recomendações semelhantes às do NAGPRA’, e frequentemente isso não é possível ou nem faz sentido nesses contextos. Então a gente quer realmente pensar na diversidade em que se vai trabalhar e tentar fazer o melhor possível, adaptando para a realidade de cada local. Não dá para você simplesmente pegar esse modus operandi e aplicar indiscriminadamente no resto do mundo.”

A professora considera que o artigo com princípios éticos é uma tentativa muito bem-vinda do grupo de Harvard, que é um dos maiores laboratórios de DNA antigo, de descolonizar as pesquisas (apesar de não usar este jargão), além de ouvir e incluir outros pesquisadores e outras disciplinas: arqueólogos, antropólogos, pessoas que trabalham em museus, representantes de grupos indígenas. “Todas estas vozes têm que ser ouvidas num estudo de DNA antigo. Não é simplesmente um geneticista chegar e querer ter uma versão final do que realmente aconteceu no passado – e em alguns trabalhos a gente vê um pouco isso. Então há um esforço para ampliar as vozes dentro e fora da academia”, define Mercedes, ressaltando que a decisão de traduzir o artigo em vários idiomas e deixar as versões disponíveis no site da Nature faz parte deste entendimento.

Identidade e raça

Logo na introdução do artigo, os autores são claros quanto a um ponto: “(…) é inadequado que dados genéticos sejam usados como um árbitro de identidade”. Mercedes explica que em alguns lugares, os estudos de DNA antigo começaram a ser usados de maneira equivocada para falar sobre coisas como “pureza racial”, ou as “origens gloriosas” de povos. “É importante a gente deixar muito claro que isso são interpretações errôneas de resultados científicos, e que nós, cientistas, não as endossamos.” Até porque, diz ela, “os grupos tradicionalmente considerados como raças humanas não têm uma boa definição em termos de marcador genético”.

Sobre a atribuição da origem geográfica, o geneticista e professor do IB Diogo Meyer, que não participou do artigo, também aponta algumas limitações. “Embora a genética seja em alguma medida informativa, e os genes sejam marcadores das histórias das espécies e das populações, os métodos genéticos para fazer uma atribuição de origem são relativos.” Ou seja, eles referenciam uma pessoa em comparação a outras. “À medida que aumentamos a amostragem do mundo, às vezes mudamos o grau de resolução que temos. Uma pessoa que estava numa região da Europa, por exemplo, vai parar em outra. E há o caso da África, que ainda está pouco estudada, então a atribuição da pessoa à África é feita de uma maneira genérica. Conforme isso vai se ampliando, conseguimos identificar regiões mais precisas. Enfim, não é algo estanque, absoluto. Então usar isso para colocar as pessoas em ‘escaninhos geográficos’ traz problemas técnicos, além dos éticos.”

A questão da identidade também é complexa, pois envolve múltiplos fatores. “Identidade não é algo linear e nem se resume à identidade genealógica. As pessoas e as sociedades constroem as identidades de formas múltiplas. Não olhando somente quem eram os seus ancestrais, mas onde você mora, como se veste, se comporta, qual a cor da sua pele… É uma quantidade imensa de fatores influenciando”, diz Diogo Meyer.

Para Mercedes, infelizmente as interpretações erradas ainda têm um apelo grande junto ao público. “As pessoas gostam de pensar nas suas origens e a genética tem sido uma das narrativas usadas. Então quisemos aproveitar para deixar bem claro que isso não é adequado, até para que não seja algo a alimentar esses movimentos nacionalistas, extremistas, racistas.”

Lacunas

Para a geneticista e professora do IB Tábita Hunemeier, que também não participou do artigo, mas o comentou a pedido do Jornal da USP, os princípios são bem-vindos, e apesar de apresentarem recomendações básicas, são um começo. “Acho muito importante terem dito que os parâmetros usados em países como os Estados Unidos não podem ser generalizados, e isso em tudo, inclusive em relação aos nativos vivos”, afirma.

Ainda assim, ela acha que o texto deixa de fora questões importantes. “Ele não discute o problema principal da evasão de amostras dos países, que é uma coisa generalizada. Não basta dizer que tem que cumprir as legislações, que variam muito. Nem só dizer que isso deve ser negociado com as comunidades tradicionais, pois isso abre muitas possibilidades das coisas não serem feitas como deveriam”, diz. E exemplifica: “Um nativo de ascendência maia pode ter um esqueleto no quintal de casa, mas isso não deve dar a ele o direito de negociar amostras. Se você não fortalece a legislação local e, principalmente, se os pesquisadores vinculados ao país não estão preocupados com que seja feito algo sério e que proteja o patrimônio histórico e genético, isso não vai acontecer”, pondera.

“Faltou então incluir algo no sentido de incentivar a construção de legislações fortes”, acrescenta. Para ela, cada país precisa ter um mínimo de regras. “Estamos com novas realidades e precisamos refazer certas legislações – dizer que a legislação de cada país deve ser cumprida e as comunidades devem ser incluídas é muito vago. E não dá para justificar ser vago dizendo que há uma diversidade de realidades. Pode-se estar dando abertura para muitas coisas que são eticamente questionáveis.”

Colonialismo e direitos indígenas

O professor do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP André Strauss, que atualmente trabalha na criação do primeiro laboratório de arqueogenética do Brasil, é outro crítico da maneira como muitos pesquisadores estrangeiros lidam com amostras de países em desenvolvimento. Para ele, “o artigo diz coisas muito básicas que ninguém vai contestar, mas é muito superficial e não levanta um dos grandes problemas, que é a comoditização das amostras numa lógica de assimetria de poder muito grande entre os países do terceiro mundo e os grandes centros de pesquisa. O que acontece, e já aconteceu no Brasil, é que o estrangeiro vem aqui, coleta centenas de amostras, leva para a Europa, e isso vira um projeto de pessoas sem nenhuma conexão cultural nem sentimental com o país. E nós, como cientistas e instituições brasileiras, não participamos nem temos ganho nenhum. Há décadas não se vivia uma dinâmica do colonialismo científico tão violenta como o DNA antigo originou”.

Para Tábita Hünemeier, também não basta falar que é preciso fazer os estudos em conjunto com pesquisadores locais; eles devem ser os pesquisadores principais. “Isso deveria estar mais claro no texto. Colaborar com pesquisadores do país fornecedor de amostra é a coisa mais fácil que existe. A questão é o protagonismo, que exista essa transferência real de conhecimento para o outro país. O quanto está sendo mandado de volta, com formação de pessoal, para estimular que a criação de grupos fortes de pesquisadores fora do eixo de sempre.”

A professora do MAE Marília Xavier Cury ressalta que, além de expressar processos colonialistas nas formas de se fazer ciência, a expatriação de materiais arqueológicos atinge também os direitos dos povos indígenas, ferindo suas lógicas e valores, e deixando uma lacuna nos museus locais sobre as histórias desses povos. Mais especificamente sobre os remanescentes humanos, ela destaca que estamos tratando de pessoas que deveriam ser respeitadas, “como devem ser respeitadas as práticas funerárias de cada cultura e grupo social”. O que não se dá quando os materiais são levados sem autorização para laboratórios de pesquisa ou museus pela profanação de sepultamentos e cemitérios, o que é uma forma de agressão aos povos indígenas que contestam tal atitude cada vez mais.

Para ela, quando os povos indígenas desconhecem que os remanescentes de seus antepassados estão em museus e laboratórios, e como estão sendo cuidados e estudados, eles estão sendo alijados dos seus direitos até mesmo de reclamar a restituição e de concluir os rituais de despedida. “Para muitos povos indígenas, o espírito está na matéria, de forma que o espírito fica aprisionado na instituição que mantém remanescente humano, incluindo aí amostras de sangue e de outros tipos.”

Atualmente, ela diz que os pedidos de repatriação vêm aumentando, ao mesmo tempo em que as áreas de arqueologia e museologia vêm revendo seus referenciais. “Se as ciências, as universidades e os museus ainda mantêm marcas profundas do colonialismo, também buscam novas epistemologias”, cada vez mais reconhecendo direitos como a participação direta dos povos tradicionais nas pesquisas e ações de preservação do patrimônio arqueológico. Algo em que o MAE é pioneiro no Brasil, realizando pesquisas colaborativas com representantes de povos Asurini, Kaingang, Guarani Nhandewa e Terena, além de ter organizado a exposição Resistência Já!, primeira com curadoria indígena na cidade de São Paulo.

De acordo com André Strauss, de maneira geral, a comunidade científica brasileira e latino-americana têm uma preocupação muito grande com os direitos dos povos tradicionais. “A minha posição geral é a de que todos os contextos onde você tem relações ancestrais estabelecidas e as populações estão vivas, cabe a elas de forma irrestrita e exclusiva as decisões a respeito do que fazer com os materiais de seus ancestrais. Isso se aplica a todo tipo de pesquisa arqueológica, mas é algo que sempre fica mais delicado quando envolve esqueletos humanos. O meu trabalho, em particular, tem lidado com populações que já foram exterminadas, então a questão acaba não se colocando. Recentemente foi a primeira vez que eu vivi uma situação do tipo, ao amostrar um esqueleto enterrado no século 19 no Oeste Paulista num montículo Kaingang. Mesmo que legalmente eu não tivesse obrigação de consultar os indígenas, eu entrei em contato com a pajé e líder espiritual para pedir autorização para estudar os esqueletos. Depois de muita deliberação, eles aceitaram, colocando algumas condições”, relata.

“Apesar da controvérsia em torno de remanescentes humanos em museus, os indígenas estão abertos ao diálogo e entendem a importância da pesquisa, quando são chamados para a conversa”, acrescenta Marília Cury, citando as falas de duas indígenas Kaingang:

Tudo isso que a gente pede pra todos vocês que mexem com nossos parentes com nossos antepassados. Fala com eles. Conversa com eles: ‘Me dê licença. Tô mexendo com vocês porque isso também é o meu estudo’. Então é isso, gente. É o que nós pedimos. (…) Sim, nós agradece o museu, que estão com nossos remanescentes, cuidando, zelando deles. Nós agradecemos muito vocês. Mas nossa preocupação são esses escavadores, que vão escavar achando que o cemitério é dele. Ele vai lá, cavucá, e leva embora. E fotografam: ‘Ó, estamos aqui!’. Eles cavucando, tirando os indígenas aqui. E onde está o índio para ver tudo isso? Não. Então, é isso que nós reclamamos, é isso que nós ficamos muito tristes. Porque enquanto está no museu, está sendo bem cuidado. Mas tem museus, que eles colocam no meio das pedra e deixam lá. [As coisas] do índio lá, [misturadas] no meio das pedras [minerais]. Então, é isso. Se não tem como cuidar, procura um museu que tenha mais condições e leve. Não é? Se tem também aqueles outros que não têm interesse. Mas tem museus que vão cuidar direitinho.

– Pajé Dirce Jorge Lipu Pereira, Terra Indígena Vanuíre, São Paulo

Os pesquisadores entram nas nossas terras, né? Não pedem licença. Escavam. Procuram. Assim como a minha mãe falou agora, tem vez que colocam [os remanescentes humanos] lá de qualquer jeito. Não tem lugar apropriado para poder guardar. Colocam outros objetos que não têm nada a ver. Falam ‘objeto’. Não é um objeto [sobre o remanescente humano]. Antes de ser ‘objeto’ era um ser humano que nem eu, que nem todos vocês que estão aí. Então, a gente pede a todos que tomem mais cuidado, tomem mais cuidado. Peçam licença para mexer. (…) E a gente fica muito triste porque, assim, quando vão lá não perguntam, na verdade não convidam nem para falar. Pelo menos perguntar algo. Você quer ir lá? Você quer ver? Você quer participar? Não! Eles não perguntam para a gente. E por quê? Por que não perguntar? Se pode ser um vô. Pode ser um bisavô, um tio distante. Então, eu acho assim mais que as pessoas têm que ter mais respeito. Mais respeito! Cuidar mais!

– Susilene Elias de Melo

(Trechos de depoimentos que podem ser acessados na íntegra em publicação neste link). [2]

[1] Foto: Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa Fapesp.

[2] Texto de Luiza Caires.

Como citar este texto: Jornal da USP. DNA antigo trouxe novas preocupações éticas para cientistas, que discutem melhores práticas.  Texto de Luiza Caires. Saense. https://saense.com.br/2021/10/dna-antigo-trouxe-novas-preocupacoes-eticas-para-cientistas-que-discutem-melhores-praticas/. Publicado em 21 de outubro (2021).

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