Antônio Murilo Macedo
11/08/2017

Representação artística do saltador de tempo. [1]
Medir com precisão intervalos de tempo é uma parte essencial da sociedade moderna. Tudo o que fazemos no nosso cotidiano (reuniões, aulas, viagens, etc) depende muito desta habilidade e é muito difícil imaginar como seria viver sem este recurso.  Felizmente estamos cercados de aparelhos que marcam a passagem do tempo, como os relógios digitais de nossos dispositivos móveis (celulares e tablets) mas também obviamente os bons e velhos relógios de pulso. No entanto, muitas vezes sequer nos damos conta de que uma sofisticada tecnologia de ponta é necessária para tornar cada vez mais precisas as medições de tempo. Mas, será que precisamos realmente de tanta precisão nos relógios?

A resposta é obviamente não se estamos apenas pensando em marcar os horários de nossos compromissos, mas considere o sistema civil de posicionamento global (o GPS que usamos nos celulares). Ele usa um sistema de satélites equipados com relógios atômicos de altíssima precisão que permite que possamos nos localizar em qualquer ponto da Terra através de aplicativos em celulares, com um erro médio de aproximadamente 5 metros em áreas abertas. O erro aumenta nas vizinhanças de prédios e pontes. Não é difícil imaginar situações nas quais um erro menor seria essencial, como em buscas por crianças perdidas, resgates de pessoas em desastres naturais, etc. A conexão é, portanto, bem direta: alta precisão nas medições do tempo implica em alta precisão nas medições de posição espacial.

A qualidade de um bom relógio é medida essencialmente por dois parâmetros: (1) a resolução, que fixa o intervalo de tempo entre um tic e um tac; (2) a precisão, que estabelece o número máximo de tics e tacs para que o atraso do relógio seja sempre menor que a sua resolução. Os antigos relojoeiros desenvolveram diversos métodos eficazes para maximizar a qualidade de seus relógios, hoje denominados de relógios clássicos, por terem seu princípio de funcionamento inteiramente estabelecido pela mecânica newtoniana. Os modernos relógios, no entanto, funcionam com base na mecânica quântica, ou mais especificamente em transições de elétrons entre níveis de átomos, como ocorre por exemplo no relógio atômico de Césio 133. Para você ter uma ideia da enorme precisão de um relógio atômico, um relógio típico de Césio levaria cerca de 1,5 milhões de anos para perder um único segundo! Mas, o que limita a precisão de um relógio quântico? A surpreendente resposta foi conhecida apenas recentemente: para medirmos com alta precisão intervalos de tempo precisamos aumentar também a entropia do universo.

Um grupo de 6 físicos de diversas universidades europeias publicou em 02 de agosto de 2017 na prestigiosa revista Physical Review X [2] um estudo detalhado sobre a profunda conexão entre as leis da termodinâmica e a qualidade de um relógio quântico minimal formado por apenas duas partes: um ponteiro e um registrador, que funcionariam como uma minúscula máquina térmica ligada a dois reservatórios, um quente e um frio. O ponteiro seria a parte do relógio cuja evolução dinâmica seria ditada pela passagem do tempo, enquanto o registrador armazenaria a informação quântica da dinâmica do ponteiro na forma de informação clássica, que seria o tic-tac do relógio. Há, portanto, um fluxo irreversível de informação entre as duas partes do relógio, algo similar a uma medição quântica. O processo como um todo só seria possível se o sistema produzir entropia. Aqui já aparece a primeira conexão profunda com a termodinâmica: para medir tempo precisamos de um dispositivo que também possa produzir entropia.

Os autores também perceberam que cada unidade de calor dissipada no reservatório frio poderia ser usada em princípio para aumentar a resolução, ou a precisão, do relógio, de modo que uma alta precisão implicaria em uma baixa resolução e vice-versa. Outro resultado surpreendente foi a descoberta de que mesmo em baixa resolução há uma limitação para a precisão do relógio que é estabelecida pela quantidade de entropia produzida, ou seja, parece haver uma conexão direta entre o quão preciso podemos ser na medição do tempo e a existência de uma seta do tempo no universo que guiaria o sentido dos processos irreversíveis.

Apesar de ainda ser muito cedo para avaliar o impacto deste trabalho, já podemos perceber o seu enorme potencial para aprofundar nossa compreensão das conexões entre termodinâmica e medições do tempo. Por exemplo, parece claro que qualquer teoria fundamental da física que unifique a mecânica quântica com a teoria geral da relatividade deverá também incluir as leis da termodinâmica, e, portanto, a natureza intrínseca da irreversibilidade. Como muitos autores ainda defendem que a seta do tempo é apenas um artefato de aproximações, há muito espaço para debate. Do ponto de vista prático, podemos antecipar o uso da termodinâmica para otimizar a arquitetura de relógios quânticos, de forma muito similar ao que ocorreu com as máquinas térmicas no século XIX. A possibilidade de usar correlações puramente quânticas e emaranhamento para aumentar a performance de um relógio quântico parece ser algo muito promissor. Talvez a nova geração de relógios quânticos para uso em sistemas GPS já sejam resultado desses desenvolvimentos. É esperar para ver.

[1] Crédito da Imagem: Hartwig HKD (Flickr) / Creative Commons (CC BY-ND 2.0). URL: https://www.flickr.com/photos/h-k-d/6171907581.

[2] P Erker et al. Autonomous quantum clocks: does thermodynamics limit our ability to measure time? Phys. Rev. X 7, 031022 (2017).

Como citar este artigo: Antônio Murilo Macedo. A termodinâmica dos relógios quânticos. Saense. URL: http://www.saense.com.br/2017/08/a-termodinamica-dos-relogios-quanticos/. Publicado em 11 de agosto (2017).

Artigos de Antônio Murilo Macedo     Home