Antônio Murilo Macedo
13/05/2018

Representação artística de um relógio emergente. [1]
No início de jogo de futebol o árbitro reúne os capitães dos dois times e faz um sorteio lançando uma moeda. O capitão vencedor pode escolher em que lado do campo deseja jogar o primeiro tempo da partida ou se prefere dar o pontapé inicial. Imagine que em um determinado jogo um capitão pedisse ao árbitro que esperasse 5 minutos para lançar a moeda. Todos nós acharíamos muito estranho este pedido, pois intuitivamente não vemos razão para achar que o resultado do lançamento da moeda possa depender do instante de tempo do lançamento. Este exemplo ilustra a noção intuitiva de invariância das leis da física com respeito a translações temporais. Não esperamos mudanças nas leis da física simplesmente pela passagem do tempo. Além desta invariância, as leis da física são também invariantes a translações no espaço e a rotações espaciais, ou seja, são iguais em qualquer ponto do universo e ao longo de qualquer direção.

Estas invariâncias são formalmente identificadas como simetrias do sistema e têm como consequência a emergência de leis de conservação. Por exemplo, a lei de conservação de energia mecânica resulta da invariância com respeito a translação temporal. Mais concretamente, se soltamos um pêndulo de uma certa altura e desprezamos perdas de energia por atrito esperamos, pela lei de conservação da energia mecânica, que depois de um período de oscilação ele retorne à posição original. Existem vídeos no YouTube mostrando este experimento com o experimentador colocando a bola bem próxima ao rosto no momento do lançamento [veja]. Similarmente, a lei de conservação do momento linear decorre da invariância com respeito a translações espaciais. Como exemplo, imagine que você está no centro de um ringue de patinação segurando uma bola de basquete. Por causa da lei de conservação do momento linear, ao lançar a bola para a frente, você se move para trás. Finalmente, existe também a lei de conservação do momento angular que é consequência da invariância a rotações espaciais. Uma bailarina de dança no gelo usa a lei de conservação do momento angular para aumentar a velocidade de rotação em torno de um eixo passando pelo seu corpo começando o movimento com os braços abertos e depois unindo os braços em cima da cabeça. A conexão direta entre leis de conservação e simetrias é um dos importantes resultados da mecânica newtoniana: o teorema de Noether.

Apesar de profundamente conectadas a leis de conservação, simetrias podem ser quebradas espontaneamente em certos materiais formando assim as diversas fases que vemos na matéria condensada. O exemplo mais simples é o cristal espacial que é simplesmente um arranjo periódico de átomos. Em um cristal espacial a simetria de translação no espaço é espontaneamente quebrada, ou seja, dentro de um cristal não é mais verdade que todos as posições espaciais são iguais, pois o espaçamento entre os átomos fornece uma distância mínima para translação. Apenas translações que são múltiplos inteiros desta distância podem exibir uma invariância nas propriedades físicas. Além disso, cristais podem fornecer direções preferenciais de simetria, quebrando assim também a simetria de rotação espacial. A classificação de sólidos em condutores, isolantes e semicondutores é uma das importantes consequências do arranjo periódico de átomos em um cristal. Mas, e a simetria de translação temporal? Ela também pode ser quebrada espontaneamente em materiais? A surpreendente resposta é sim! Os materiais com esta propriedade são denominados de cristais do tempo ou cristais temporais.

Em 2012, Frank Wilczek (prêmio Nobel de física em 2004) fez a surpreendente previsão teórica [2] de que sistemas cristalinos no tempo poderiam existir no estado de mais baixa energia. Ele argumentou que estes sistemas teriam um padrão de movimento, uma espécie de dança, que seguiria uma coreografia fixa e periódica no tempo. As propriedades físicas destes cristais temporais seriam funções periódicas do tempo com período intrínseco fixo. Os sistemas seriam um tipo especial de relógio que emergiria espontaneamente a medida em que o sistema fosse levado ao seu estado de mais baixa energia. Apesar de intrigante, a ideia de Wilczek tinha problemas conceituais, pois o sistema parecia se comportar como uma máquina de movimento perpétuo, o que é proibido pela termodinâmica de equilíbrio. Apenas em 2016, físicos das universidades americanas de Princeton [3] e Santa Barbara [4] resolveram o problema conceitual admitindo a hipótese de quebra espontânea de simetria temporal em sistemas quânticos estacionários mantidos fora do equilíbrio termodinâmico pela aplicação de uma força periódica. Eles mostraram, por exemplo, que cristais temporais quando submetidos a uma ação externa periódica de período T, não respondem seguindo o mesmo período T. Este surpreendente resultado fornece uma eficiente técnica para identificar experimentalmente esses cristais do tempo. Para entender o quão estranho é este comportamento, considere a seguinte alegoria. Você está brincando de pular corda com dois amigos que giram os braços de modo que a corda passe pelos seus pés a cada 2 segundos. Admita agora que a corda é um cristal do tempo e peça para seus amigos dobrarem a rotação dos braços de modo que eles façam dois círculos completos a cada 2 segundos. Como o período de um cristal temporal é fixo, você ainda veria a corda passar apenas uma vez por seus pés a cada 2 segundos!

A solução teórica é intrigante, mas física real é feita em laboratório. Seria realmente possível fazer materiais com esta estranha propriedade de cristal temporal? A resposta positiva veio em dois artigos recentes [5,6]. Em [5] os autores usaram um sistema de íons aprisionados que operavam em um regime de localização coletiva. Em [6] o sistema era um diamante com cerca de um milhão de centros de impurezas dipolares acoplados por uma interação de longo alcance. No entanto, o resultado mais interessante veio em um trabalho mais recente [7] onde físicos da Universidade de Yale obtiveram um cristal temporal em um sistema que também é um cristal espacial: a adenosina difosfato (ADP). As oscilações temporais observadas tinham frequência que era a metade da frequência da fonte externa.

A comprovação experimental da emergência desta exótica fase quântica com quebra espontânea de simetria de translação temporal é sem dúvida um resultado conceitual significativo. No entanto, ainda é muito cedo para prever a importância tecnológica desses cristais temporais. Possíveis aplicações incluem implementações de protocolos de informação quântica e a realização de memórias quânticas robustas.

[1] Crédito da Imagem: HumMelissa_Glee (Fickr) / Creative Commos (CC BY 2.0). https://www.flickr.com/photos/hummelissa_glee/14020586398.

[2] F Wilczek. Quantum Time Crystals. Phys Rev Lett 109, 160401 (2012).

[3] V Khemani et al. Phase Structure of Driven Quantum Systems. Phys Rev Lett 116, 250401 (2016).

[4] NY Yao et al. Discrete Time Crystals: Rigidity, Criticality, and Realizations. Phys Rev Lett 118, 030401 (2017).

[5] J Zhang et al. Observation of a discrete time crystal. Nature 543, 217 (2017).

[6] S. Choi et al. Observation of discrete time-crystalline order in a disordered dipolar many-body system. Nature 543, 221 (2017).

[7] J Rovny et al. Observation of Discrete-Time-Crystal Signatures in an Ordered Dipolar Many-Body System. Phys Rev Lett 120, 180603 (2018).

Como citar este artigo: Antônio Murilo Macedo. Cristais do tempo. Saense. http://saense.com.br/2018/05/cristais-do-tempo/. Publicado em 13 de maio (2018).

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