Jornal da USP
31/10/2019
Por Sérgio A. David e José A. Rabi, professores da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da USP/Pirassununga
Enquanto a álgebra estuda os números e suas propriedades, a geometria se preocupa com as propriedades do espaço e dos elementos nele posicionados. Tanto a álgebra como a geometria são ramos da matemática básica aos quais somos expostos em nossa trajetória escolar comum. E quanto ao cálculo?
Geralmente ensinado em cursos superiores, o cálculo é o ramo da matemática que estende conceitos da álgebra e da geometria para resolver problemas mais complicados. Então, os seguintes questionamentos surgem aqui: que problemas esses e que “complicação a mais” eles têm?
Em linhas gerais, são problemas em que os elementos envolvidos não são constantes, ou seja, estão de alguma forma variando. Portanto, pode-se dizer que o cálculo é o ramo da matemática que lida com a mudança, com a alteração, com a transformação. E como praticamente tudo ao nosso redor está permanentemente variando (no tempo e/ou no espaço), o cálculo encontra, pois, uma gama enorme de aplicações em nosso cotidiano.
O cálculo é uma ferramenta matemática amplamente usada por profissionais que lidam com informações quantitativas, dentre eles economistas, engenheiros e cientistas. Com auxílio do cálculo, tais profissionais resolvem problemas complicados que afetam nosso dia a dia tais como prever preços a serem praticados no mercado, melhorar o desempenho de aparelhos e equipamentos que usamos e analisar a evolução de fenômenos que ocorrem na natureza.
Para resolver esses problemas complicados envolvendo variações, o cálculo se apoia na famosa máxima que vem desde o Império Romano: divide et impera, dividir para conquistar. No caso, o cálculo se faz valer de “infinitas” subdivisões (no tempo e/ou no espaço) que, por conta disso, tornam-se “infinitamente” pequenas.
Apoiadas em tais subdivisões “infinitesimais”, surgem duas ideias fundamentais do cálculo: a derivação (ou diferenciação) e a integração. A sabedoria popular consegue muito bem sintetizar esta última ideia: “de grão em grão a galinha enche o papo”. Integrar consiste justamente em somar pequenas partes de algo para que o total seja avaliado. Por sua vez, derivar pode se referir ao quão espaçado os grãos estão entre si como também se referir à rapidez com que a galinha come os grãos. Obviamente estamos aqui fazendo uma analogia, pois, para usar o cálculo, economistas, engenheiros e cientistas identificam o que (na nossa analogia) desempenha o papel dos “grãos” para que os conceitos de integração e/ou de derivação possam ser devidamente aplicados na solução dos problemas.
Na abordagem (dita) clássica do cálculo integral e diferencial, concebida há pouco mais de três séculos com contribuições independentes de Newton e Leibniz, as subdivisões infinitesimais são (por assim dizer) inteiras: a galinha vai de grão em grão inteiro ou então ela dá passos inteiros, um após outro, em busca dos grãos. Já na abordagem fracionária do cálculo, as subdivisões infinitesimais não precisam necessariamente ser inteiras: elas podem tanto se estenderem além ou ficarem aquém de uma subdivisão inteira.
O efeito de memória sobre a história de alguns sinais de sistemas físicos também tem relevância. Uma integral de primeira ordem (portanto, inteira) em relação a uma variável que representa o estado de um sistema, por exemplo, pode ser pensada como uma soma ponderada sobre toda a história do mesmo em que se atribuem pesos (iguais) a cada ponto, independente de quão longe ou quão no passado estão tais pontos. Uma integral de ordem fracionária (não inteira) é também uma soma ponderada. No entanto, os pesos diminuem quanto mais distantes os pontos estão no espaço ou quanto mais para trás estão no tempo. Por sua vez, a derivada fracionária requer o conceito de integral fracionária, caracterizando o chamado cálculo fracionário.
Embora conjecturado pouco depois da abordagem inteira, com origem atribuída a uma troca de cartas entre L’Hôpital e Leibniz em 1695, somente recentemente o cálculo fracionário (ou cálculo de ordem não inteira) tem atraído interesse. Demonstrando ter propriedades e características que podem ser superiores às do cálculo integro-diferencial clássico, o cálculo fracionário tem encontrado aplicações em diversas áreas do conhecimento e, em particular, em diferentes instâncias na física. No entanto, a aplicação do cálculo fracionário à Teoria da Relatividade é uma relação a ser estabelecida e o modo como constituir tais relações inéditas é o que vislumbra nosso artigo recém-publicado (on-line) no periódico Axiomathes (Springer).
Concebida por Albert Einstein, a Teoria da Relatividade é composta pela Teoria Especial da Relatividade (dita Relatividade Restrita, publicada em 1905) e pela Teoria Geral da Relatividade (chamada Relatividade Geral, publicada em 1916). A primeira lida com efeitos do movimento uniforme sobre (como mensuramos) o espaço e o tempo, enquanto a segunda amplia a primeira de modo a incluir efeitos da aceleração e da gravidade. Em ambas o cálculo se faz presente na medida em que o movimento se refere à variação da posição com o tempo (mensurada via velocidade) e a aceleração se refere à variação da velocidade com o tempo.
Resulta da Teoria da Relatividade o surpreendente fato de que observações (isto é, mensurações) sobre o espaço e o tempo são diferentes quando realizadas por observadores movendo-se um em relação ao outro, sobretudo se a velocidade relativa entre eles for muitíssimo elevada (entenda-se: próxima à velocidade de propagação da luz). Ainda que desafiem nosso “senso comum”, experimentos realizados desde a publicação da Teoria da Relatividade têm confirmado que espaço e tempo são de fato percebidos de formas diferentes dependendo das velocidades dos observadores.
Especificamente, um observador vai alegar que houve “contração do espaço” nas mensurações do outro, enquanto que o “outro” vai alegar que houve “dilatação do tempo” nas observações do “um”. No formalismo matemático da Teoria da Relatividade, as coordenadas no espaço e no tempo de eventos registrados por um observador são numericamente convertidas para as coordenadas mensuradas pelo outro observador por meio das chamadas “transformações de Lorentz”.
Nosso artigo vislumbra a possibilidade de aplicar o cálculo fracionário a fim de numericamente converter coordenadas de espaço (posição) e de tempo (instante) entre observadores com movimento relativo entre si, de modo a obter os mesmos resultados relativísticos obtidos através das transformações de Lorentz. É interessante notar que “contração do espaço” e “dilatação do tempo” são efeitos que vão ao encontro dos conceitos de subdivisões infinitesimais não inteiras que ficam aquém ou se estendem além de subdivisões inteiras em derivadas de ordem fracionária.
Tendo em mente postulados históricos da Teoria da Relatividade, nosso trabalho discute argumentos a favor da aplicação do cálculo fracionário enquanto rota matemática alternativa para esta impressionante e fascinante teoria da física. Torna-se, portanto, instigante imaginar que rumo pode tomar aquela famosa fórmula combinando massa e energia, E = m c2, publicada por Einstein em seu artigo de 1905.
Como citar este artigo: Jornal da USP. Pode o cálculo fracionário ser aplicado à Teoria da Relatividade? Texto de Sergio Adriani David e José Antonio Rabi. Saense. https://saense.com.br/2019/10/pode-o-calculo-fracionario-ser-aplicado-a-teoria-da-relatividade/. Publicado em 31 de outubro (2019).