Jornal da USP
12/03/2020
Por Maria Arminda do Nascimento Arruda, diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/ USP) e coordenadora do Escritório USP Mulheres, e Vahan Agopyan, reitor da USP
O dia 8 de março celebra internacionalmente a luta das mulheres pela igualdade em relação aos homens, em todos os aspectos que perpassam os direitos civis, políticos e sociais. Historicamente, esta data não possui um único marco. A sua instituição decorreu de uma moção aprovada na Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, realizada em Copenhague, em 1910, para que se criasse um dia internacional de celebração das lutas das mulheres trabalhadoras que já ocorriam na Europa e nos Estados Unidos. No entanto, episódios trágicos como a morte de 123 mulheres (muitas delas imigrantes) e de 13 homens no incêndio da camisaria Triangle Shirtwaist Company, em Nova York, em 1911, foram incorporados às justificativas para a criação da data. A escolha do dia 8 de março, por sua vez, tem sido relacionada à eclosão das manifestações lideradas por mulheres russas que deram origem à Revolução de Outubro, em 1917. Nos dias atuais, após a Organização das Nações Unidas oficializar esta data, em 1975, como Dia Internacional da Mulher, convivemos com manifestações que celebram de diferentes maneiras as lutas pela emancipação das mulheres, em paralelo a comemorações menos reflexivas.
A Universidade de São Paulo, conjuntamente com outras instituições de ensino no Brasil e no exterior, tem contribuído diretamente com a defesa da igualdade de gênero, seja por meio do estímulo a pesquisas, seja por intermédio da identificação dos dilemas vivenciados pelas mulheres, seja ainda buscando soluções que possam dirimir as desigualdades. Além de fomentar a pesquisa sobre as relações de gênero, o que permitiu à USP contar com especialistas de renome, cuja produção intelectual tem contribuído com o debate realizado no Brasil e no exterior, a Universidade se responsabiliza pela formação de gerações de estudantes – mulheres e homens – que igualmente se dedicam à agenda dos direitos humanos, tendo como referência o ferramental teórico-metodológico adquirido nos cursos de humanidades, ciências biológicas e exatas. Em termos institucionais, dados organizados pelo Escritório de Gestão de Indicadores de Desempenho Acadêmico (EGIDA/ USP) informam que a USP abriga 2.202 docentes mulheres em atividade, 23.438 alunas de graduação e outras 11.554 de pós-graduação, além de grande contingente de servidoras nos quadros técnicos. Em relação aos homens, as alunas de mestrado e doutorado estão em maioria (51%) e na graduação são um pouco menos da metade (45%). Já as docentes estão em minoria, correspondendo a 37% do total. Promover a igualdade de oportunidades para mulheres e homens em todos os aspectos da carreira universitária é hoje uma necessidade reconhecida pela instituição. Para avançar neste trabalho foi criado, em 2016, o Escritório USP Mulheres, a partir do convite da ONU Mulheres para que a Universidade integrasse o Projeto Impact 10x10x10, junto com outras nove universidades ao redor do mundo. Esta iniciativa é parte do Movimento HeForShe, que foi traduzido para o português como ElesPorElas. As atividades realizadas neste período contribuíram para inserir a Universidade no debate sobre a igualdade de gênero, em diálogo com os coletivos de mulheres, compostos por estudantes, professoras e funcionárias, e que hoje são numericamente expressivos e atuantes. A criação de Comissões de Direitos Humanos nas unidades da USP, por exemplo, é parte integrante das ações desenvolvidas, do mesmo modo como a realização de uma pesquisa inédita entre os estudantes, que buscou avaliar a qualidade das interações na USP. Ao final de 2019, o Escritório USP Mulheres deu início a iniciativas com o objetivo de aprofundar a institucionalização das ações, planejando a criação de programas e de estudos que possam contribuir com o enfrentamento da violência de gênero e com a promoção da igualdade de oportunidades no ambiente universitário, iniciativa a ser projetada para a sociedade.
De maneira mais ambiciosa, compreendemos que é o momento da Reitoria, em uma ação coordenada pelo Escritório USP Mulheres com as Pró-Reitorias e demais órgãos da administração da Universidade, aprofundar o diálogo com os movimentos internos e externos à comunidade universitária e avançar em medidas que possam produzir impactos estruturais, interrompendo dinâmicas que hoje perpetuam a desigualdade, adotando políticas que possam acelerar processos de equiparação de oportunidades no âmbito da Universidade de São Paulo. Essas ações têm sido discutidas e planejadas de forma a ajustar-se às diferentes realidades vividas pelos discentes, pelos docentes e pelo quadro técnico da Universidade, como resumimos a seguir.
Comunidade discente – Projetando o futuro
A prioridade junto aos estudantes é criar condições para que alcancemos um percentual igualitário de participação entre alunos de todas as áreas do conhecimento, com atenção especial às STEM (sigla inglesa para Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática). Nessa área, é possível construir políticas que estimulem alunas do ensino médio para que se interessem por essas carreiras, oferecendo apoio àquelas que desejarem seguir nesses cursos. Às ingressantes é possível, da mesma forma, fomentar o surgimento de mentorias que ofereçam suporte a essas estudantes, realizar atividades de integração e superação de desafios, conferir premiações, entre outras atividades que contribuam para a permanência e a conclusão da graduação. Nesse sentido, fundamental será envolver a Pró-Reitoria de Graduação (PRG) e a Pró-Reitoria de Pesquisa (PRP) em uma definição de percentuais mínimos à distribuição de bolsas de Iniciação Científica para todas as áreas, estabelecendo uma progressão que produza, em poucos anos, um cenário de bolsas distribuídas igualmente entre alunas e alunos. Compreendemos também a necessidade de criar, a partir da graduação, um esforço contínuo de conscientização da comunidade da USP sobre a importância da pauta dos direitos humanos, do respeito às diferenças, da promoção da igualdade de oportunidades. Especificamente nesse campo, ainda em 2020, está sendo proposta, junto à PRG, uma disciplina de gênero, inicialmente eletiva e em formato EaD, voltada aos alunos ingressantes em todas as habilitações oferecidas pela Universidade. Segundo o mesmo espírito, um conjunto de iniciativas poderá ser desenvolvido, com a finalidade de conscientizar a todos os envolvidos na vida universitária sobre a importância da sua atuação no processo. Estamos convencidos que é por intermédio da mudança de valores que as desigualdades serão superadas. Sabedores que transformações de comportamentos não são automáticas, tampouco simples e rápidas, mudar atitudes dependerá da participação de esferas centrais da Universidade, para cujo concurso a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU) deverá ter papel decisivo.
A pós-graduação tem papel igualmente central. É ingente e necessário construir medidas de apoio àqueles que se tornam mães e pais. De acordo com dados obtidos recentemente junto ao EGIDA/USP sobre o uso de licenças parentais pela comunidade universitária entre 2009 e 2019, constatou-se que, ao passo que a demanda entre as docentes mulheres não alcança 0,5% do total de licenças requeridas, a demanda entre as alunas de mestrado e doutorado totalizou 2.158 casos neste período, sendo a maior parte pelas estudantes de doutorado e doutorado direto (61,8%). A partir de uma reflexão conjunta com a Pró-Reitoria de Pós-Graduação vislumbrou-se formas mais abrangentes de apoio, como prorrogar por mais dois meses o pagamento de bolsas durante as licenças-maternidade, que hoje são concedidas pelas agências de fomento por quatro meses às alunas de mestrado e doutorado, em dissintonia com os seis meses concedidos pela USP. A complementação do pagamento de bolsas neste período crítico de conclusão dos estudos – especialmente nos casos que envolvem o término de pesquisas – pode caracterizar-se como um apoio diferenciado às mães pesquisadoras neste momento tão crucial de suas carreiras, tornando a nossa universidade pioneira em iniciativas dessa natureza. Da mesma maneira, aos pais pesquisadores pode-se avançar na criação de um auxílio proporcional ao afastamento por vinte dias, direito ainda não previsto por nenhuma agência de fomento.
Comunidade docente – Igualdade de reconhecimento na produção do conhecimento
Como apresentado no início, o percentual de docentes mulheres em atividade na USP não alcança os 40% do total. Vemos esta diferença persistir e, a depender da área, aprofundar-se, em relação às professoras titulares. Condições relacionadas ao ingresso, à produtividade e às oportunidades de progressão podem ser aprimoradas. No primeiro caso, é preciso considerar a criação de uma cota mínima para o ingresso de mulheres nos concursos públicos realizados. Como mencionado, é preciso ver com preocupação o fato de a pós-graduação ser um ambiente no qual as mulheres estão em pé de igualdade com os homens, ao passo que isto não se traduz – pelo menos no caso da USP – em uma elevação do percentual de mulheres docentes. A partir de dados mobilizados junto ao EGIDA/USP, foi identificado que, entre 1999 e 2019, a proporção de ingressantes nas carreiras docentes da Universidade como professor doutor encontra-se cristalizada em uma situação na qual os homens correspondem a 60,3% dos ingressantes, enquanto as candidatas mulheres não alcançam a marca dos 40%. Este percentual chegou a ser atingido nos anos que registraram um volume elevado de contratações (2003, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009, 2011 e 2012) e depois em 2019 (43%). Mesmo em 2008, ano que registrou o maior número de contratações por concurso público (1.008), a proporção de mulheres manteve-se em 42%. Um cenário que se encontra congelado por duas décadas, levando-se em conta as transformações estruturais pelas quais tem passado a sociedade brasileira, revela um processo que tende a não se alterar sem que haja uma ação deliberada de estímulo. Neste caso, levando-se em consideração as realidades vividas em cada unidade, é possível avançar no debate interno – se for o caso, envolvendo as demais universidades públicas e o Legislativo paulista – sobre o estabelecimento de um percentual mínimo de ingresso de mulheres nas carreiras docentes acima da média registrada, com o compromisso de progredir a cada ano para uma realidade em que homens e mulheres ocupem metade das posições existentes.
Para obter a igualdade na progressão das carreiras, seria igualmente importante estabelecer, em entendimento com as unidades, percentuais de gênero na composição de bancas de defesa, eventos científicos e atividades de pesquisa. Uma iniciativa pioneira foi recentemente adotada pela Faculdade de Direito que, por meio da Portaria 09/2020, instituiu a participação de pelo menos 25% de expositoras, debatedoras, mediadoras e oradoras nos eventos organizados por aquela instituição (Art. 2º). A ampliação da participação das mulheres nas diversas modalidades acadêmicas deverá erigir-se em estímulo à redução das desigualdades presentes na hierarquia da Universidade. De acordo com o levantamento já mencionado, a proporção de mulheres que chegam à titulatura é ainda mais reduzida, limitando-se a 30,6% do total ao longo de duas décadas. Esta proporção decresceu de maneira surpreendente nos anos recentes, pois em 2000, ainda que em um ano isolado, a presença de mulheres no topo da hierarquia chegou a 40%. Por fim, e não menos importante, é necessário atuar na modificação da atual proporção entre mulheres e homens em cargos de direção, liderança e gestão da Universidade. Dados coletados no Portal Urânia no início deste ano, acompanhados de verificações complementares nos sites dos órgãos de administração da USP, revelam um panorama no qual 73% dos cargos de liderança são exercidos por homens, contra apenas 27% de presença feminina, números reveladores da desigualdade de oportunidades vigente na Universidade de São Paulo.
Quadros técnicos – Oportunidades iguais de realização profissional
Ainda que os dados existentes não permitam refletir com igual precisão as realidades vividas pelos servidores não docentes da USP, compreende-se a necessidade de avançar em políticas internas que possam redefinir as posições de chefia e direção dos serviços técnico-administrativos. Em que pesem as desigualdades certamente existentes e persistentes, a administração pública tem sido um lugar historicamente promotor da igualdade de vencimentos entre os gêneros, no que diz respeito à equiparação dos salários oferecidos para as mesmas funções desempenhadas. Questão diversa é tratar das desigualdades de recebimentos, em função das dificuldades de acesso aos cargos de chefia. O desafio da Universidade de São Paulo, como instituição pública de ensino superior, é assegurar que a progressão para posições de gestão e direção siga uma lógica paritária entre homens e mulheres. Da mesma forma, reconhece-se a importância de abrir um diálogo construtivo com os movimentos organizados dos servidores da Universidade no que diz respeito ao aprimoramento da rede de proteção social voltada ao cuidado dos filhos e à promoção da saúde hoje existentes. Os dados já mencionados sobre a concessão de licenças-parentais registram uma grande adesão por parte dos servidores do sexo masculino. Entre 2009 e 2019, 1.804 servidores do sexo masculino (49,2% sobre o total de benefícios concedidos) usufruíram de alguma forma de licença-paternidade, 4 deles (0,11%) de licença-adoção, ao passo que 1.604 servidoras (43,78%) usufruíram alguma modalidade de licença-maternidade e 26 delas (0,71%) de licença-adoção. Assim como em relação aos docentes homens, ações de reforço à figura dos pais como corresponsáveis pela criação de seus filhos contribuirão para desnaturalizar as divisões sexuais do trabalho hoje dominantes.
As questões aqui analisadas e as linhas de ação inicialmente intuídas fazem parte da agenda de promoção da igualdade de oportunidades entre todos aqueles que participam da vida universitária, em prol da superação das distorções que teimam persistir, mesmo em um contexto crescentemente aberto ao acolhimento da pauta dos direitos. Para avançar, é preciso ousar e estar à altura do tempo. De maneira inquestionável, necessário se faz romper a cultura cristalizada da desigualdade em todas as suas manifestações, que, ainda hoje, habita os corações e as mentes da sociedade brasileira, e que reverbera no seio da nossa comunidade. Para tal empreitada é preciso o igual engajamento de mulheres e homens. Como argumenta a sra. Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora executiva da ONU Mulheres, responsável pelo Movimento HeForShe / ElesPorElas do qual a USP faz parte: “A ONU Mulheres inteira é ElasPorElas, ou SheForShe, mas isso não é o suficiente. O tamanho do problema nos mostra que temos que diversificar. Nós precisamos que os homens sejam parte da solução porque é preciso refletir masculinidades positivas”. Propor mudanças de rumo nesse assunto tão sensível à convivência e à sociabilidade acadêmica tornará a Universidade de São Paulo uma instituição à altura do seu tempo; abrirá caminhos para que as novas gerações possam enfrentar os dilemas que pesam sobre nós, no caminho inescapável de construir uma sociedade mais justa.
[1] Imagem de Gerd Altmann por Pixabay.
Como citar este artigo: Jornal da USP. Construir a igualdade. Texto de Maria Arminda do Nascimento Arruda e Vahan Agopyan. Saense. https://saense.com.br/2020/03/construir-a-igualdade/. Publicado em 12 de março (2020).