Jornal da USP
24/03/2020
Por Herton Escobar, jornalista especializado na cobertura de Ciência e Meio Ambiente e colaborador do Jornal da USP
Imagine só a seguinte situação: você vai ao médico fazer um check-up de rotina e ele diz: “Vou te aplicar uma injeção que você não precisa, e que muito provavelmente não vai te causar mal nenhum; mas ao tomá-la, tem 20% de chance de você precisar de uma internação hospitalar e 3% de chance de você morrer”. Que tal? Você tomaria?
Basicamente, é isso que você está fazendo ao se expor voluntariamente ao contágio pelo novo coronavírus (SARs-CoV-2) nesse momento; saindo à rua sem necessidade, participando de aglomerações ou deixando de seguir as orientações básicas de segurança sanitária, como evitar abraços, lavar as mãos, etc.
Na verdade, estou sendo otimista, pois a chance de alguém morrer do coronavírus pode chegar a 7%, dependendo da situação. No caso de pessoas acima de 80 anos, a letalidade é de 15% — ou seja, de cada 100 pessoas infectadas nessa faixa etária, 15 vão morrer. É um número altíssimo, especialmente para um vírus que se propaga com tamanha facilidade.
A taxa varia de acordo com as características da população e os parâmetros usados no cálculo. Um estudo publicado em 12 de março na revista médica The Lancet estimava essa taxa em 3,6% na China e 1,5%, no resto do mundo. Nos Estados Unidos, a letalidade estimada pelas autoridades é de 1%. Ou seja, na melhor das hipóteses, de cada 100 pessoas infectadas pelo novo coronavírus, pelo menos uma vai morrer; talvez três, talvez sete. Os idosos são certamente os mais vulneráveis, mas a Organização Mundial da Saúde alertou recentemente que jovens e crianças também são suscetíveis e estão morrendo da infecção.
Em outras palavras: seja qual for sua idade ou nacionalidade, existe uma chance real de você morrer do coronavírus se for infectado.
Agora, se ainda assim você acha que é jovem e saudável demais para se preocupar com isso, imagine outra situação: você sofre um acidente de carro e é levado às pressas para o hospital, mas não consegue ser atendido porque o pronto-socorro está abarrotado e não há leitos disponíveis na UTI, devido ao excesso de pessoas com problemas respiratórios causados pelo coronavírus.
Ou então: sua mãe, idosa, passa mal por qualquer motivo e precisa ir ao pronto-socorro; chegando lá tem de esperar oito horas para ser atendida, numa sala lotada de gente tossindo e espirrando. No fim das contas, ela volta para casa infectada pelo coronavírus — que não era o problema inicial. Os exames demoram dias para serem concluídos, porque os laboratórios estão sobrecarregados. Alguns dias depois, ela fica doente e precisa ser internada na UTI com problemas respiratórios, vindo a óbito na sequência.
Ou então: você ignora o risco da epidemia, vai a uma manifestação de rua no domingo, contrai o vírus (mas não fica doente imediatamente), depois vai visitar sua avó, passa o vírus para ela, e ela morre de pneumonia duas semanas depois. Perfeitamente factível de acontecer.
Um estudo publicado pela revista Science em 16 de março ressalta que os portadores assintomáticos — aqueles que têm o coronavírus, mas não sabem disso — são os principais propagadores da epidemia. O potencial de transmissão de quem tem sintomas muito leves ou não apresenta sintomas é menor (porque as pessoas tossem menos, por exemplo), mas como o número desses casos é muito maior (mais de 80% do total), e essas pessoas permanecem mais ativas e tomam menos cuidados, elas acabam contribuindo mais para o espalhamento da epidemia do que os doentes graves, que acabam isolados por força da doença.
Moral da história: mesmo que você não pegue o vírus, ou não tenha sintomas graves, sua saúde (e a das pessoas que você ama) pode ser gravemente afetada pela epidemia. Por isso é tão importante conter o avanço da epidemia de forma coletiva nesse momento; porque todos temos a perder com ela.
Os primeiros casos registrados no Brasil foram de pessoas de poder aquisitivo mais alto, que estiveram recentemente na Europa e na Ásia, e puderam buscar atendimento em hospitais particulares. E isso já trouxe uma sobrecarga significativa ao sistema. Agora, imagine esse mesmo vírus, altamente contagioso, chegando às populações mais pobres, que vivem espremidas nas periferias, ou circulando por uma 25 de Março lotada no domingo. É uma bomba epidemiológica prestes a explodir — e que talvez já tenha explodido.
Esse é o perigo coletivo maior: o colapso dos sistemas de saúde, tanto público quanto privado. Foi o que aconteceu na Itália: os leitos de UTI acabaram, as pessoas não conseguiam ser atendidas com a urgência e a atenção necessárias, e a mortalidade da infecção disparou. Resultado: um país inteiro de quarentena, por força de lei, com escolas fechadas, comércio fechado, cinemas fechados, tudo fechado, à exceção de serviços essenciais como supermercados e farmácias. Todo mundo trancado dentro de casa para diminuir a disseminação do vírus. Até o início desta semana, quase 3 mil italianos já haviam morrido da epidemia.
A experiência de todos os países já afetados pela pandemia mostra que quanto mais cedo são implementadas medidas de distanciamento social, melhores os resultados. O vírus vai se espalhar pela sociedade como um todo; isso é inevitável. A diferença é a velocidade com que essa disseminação acontece. Se o vírus se espalha rapidamente e muita gente fica doente ao mesmo tempo, os sistemas de saúde ficam sobrecarregados e mais gente morre; se o vírus se espalha de forma lenta, os sistemas de saúde conseguem absorver a demanda e menos gente morre. Simples assim. É o tal “achatamento da curva”, do qual você já deve ter ouvido falar, e que o cientista Atila Iamarino explica neste vídeo: https://youtu.be/Y10vCOXxtds (destaque a partir do minuto 11).
“Temos que achatar a curva. Com isso a gente consegue proteger o nosso sistema de saúde e reduzir muito a mortalidade do vírus”, resume o virologista Paolo Zanotto, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo.
Não há dúvida que as medidas necessárias para conter a epidemia terão um impacto socioeconômico gigantesco em todos os países. Do senhorzinho que vende pipoca na porta do estádio até os grandes empresários e pequenos comerciantes de bairro, todos serão afetados pela queda no consumo, e nossos governantes terão de achar soluções para minimizar esse impacto de alguma forma. É um preço alto a pagar, sem dúvida, mas inevitável. Adiável? Talvez, mas a um custo muito maior de vidas humanas. A ciência é muito clara com relação a isso.
Como bem disse o diretor geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, “estamos todos juntos nessa, e só poderemos ter sucesso juntos”.
“Crises como essa tendem a trazer à tona o melhor e o pior da humanidade”, disse Ghebreyesus, durante uma coletiva de imprensa, no dia 16. “Os próximos dias, semanas e meses serão um teste de nossa determinação, um teste de nossa confiança na ciência e um teste de solidariedade. Esse incrível espírito de solidariedade humana deve se tornar ainda mais infeccioso que o próprio vírus. Embora possamos ter que ficar fisicamente separados uns dos outros por um tempo, podemos nos unir de maneiras como nunca fizemos antes.”
[1] Imagem de K. Kliche por Pixabay.
Como citar este artigo: Jornal da USP. Coronavírus: o risco individual de não pensar no coletivo. Texto de Herton Escobar. Saense. https://saense.com.br/2020/03/coronavirus-o-risco-individual-de-nao-pensar-no-coletivo/. Publicado em 24 de março (2020).