Jornal da USP
13/05/2020
Por Eduardo Henrik Aubert, doutorando em Letras Clássicas na FFLCH/USP, e Marcelo Módolo, professor da FFLCH-USP e pesquisador do CNPq
As expressões “testar positivo” e “testar negativo”, como nas manchetes “Boris Johnson testa positivo para coronavírus” ou “Bolsonaro anuncia que testou negativo para coronavírus”, vêm despertando certa curiosidade. Especialistas como Marcos Bagno, por exemplo, têm produzido reflexões para explicar o que parece ser o surgimento de uma nova sintaxe no português brasileiro[1].
Tradição e inovação
Aos que questionam tratar-se ou não de bom português, afirmando que “testar” é verbo transitivo direto, recordamos que tradicionalmente esse verbo apenas aparecia nos dicionários nos sentidos jurídicos de “legar em testamento” e de “dar testemunho”. O substantivo cognato “teste” resistia como latinismo, significando “testemunha”, ademais “obsoleto” para Cândido de Figueiredo, já em 1899.
Apenas decênios depois, “teste” foi incorporado ao léxico no sentido de “exame”, provindo do inglês test, como avisa Laudelino Freire, em 1954. Mais ou menos ao mesmo tempo, em 1961, outro grande dicionarista, Antenor Nascentes, admitiu “testar” no sentido de “submeter a teste”. É, portanto, fenômeno razoavelmente recente em português usar o verbo “testar” como transitivo, cujo objeto designa a coisa ou a pessoa submetida a teste.
O tempo é salvo-conduto?
Ao franzir o cenho diante de “ele testou positivo”, estejamos, pois, alertas de que, ao falante do começo dos 1900, frases como “o médico testou a amostra de sangue do paciente” soariam no mínimo estranhas. Se julgamos, portanto, “ele testou positivo” como mau português, mas reputamos castiço “ele testou a amostra”, devemos admitir que nossa indignação é seletiva aos estrangeirismos muito recentes, tendo sido anistiados todos aqueles que contam mais de 50 anos.
Contudo, mesmo expressões como “ele testou positivo” já estão andadas em anos. Eram muito raras ainda no final do século XX, mas a encontramos em reportagens de 1994 (“O próprio Reinach testou positivo”)[2] e de 2000 (“qual é a chance de a pessoa que testou positivo ter de fato a doença…?”)[3]. De lá para cá, a construção foi encorpando a musculatura e, se faltava algo para ganhar foros de cidadania em língua portuguesa, o coronavírus deu conta do recado.
Decalque do inglês
Que se trate de decalque do inglês, isto é, tradução literal daquela língua, é ponto pacífico. Tal construção frequentemente figura, nos anos 2000, em reportagens obtidas junto a agências internacionais ou na tradução de declarações de língua inglesa.
Em geral, como no inglês he tested positive for coronavirus, figuram, também em português, sujeito, verbo e dois complementos, um indicando o resultado do teste (positivo ou negativo) e o outro, com a preposição “para” (como o for em inglês), delimitando o escopo do teste: “ele testou negativo para coronavírus”. Ambos os complementos podem, contudo, não comparecer.
Na seguinte frase, o pretérito mais-que-perfeito remete ao próprio momento do teste, quando ainda não saíra o resultado: “Federação Italiana suspende brasileiro, que testara para maconha, por oito jogos”[4]. O complemento relativo ao resultado do exame não é, portanto, indispensável para que se possa depreender sentido de um enunciado.
De modo um pouco diferente, se o contexto está evidente, pode-se dizer algo como: “nossa comitiva foi pequena e restrita e tomamos os devidos cuidados, tanto que eu testei negativo”[5]. Aqui provavelmente estamos defronte a uma elipse, a supor um complemento tácito, sem a externalização de “para coronavírus”.
A recepção de uma “nova” sintaxe
Toda migração – inclusive linguística – só funciona quando a zona de acolhida é propícia. Ora, qual é o húmus que permitiu falar “testar positivo” em português sem gerar dificuldades de entendimento?
Em português, um verbo usualmente transitivo vem muita vez tratado como intransitivo, e o paciente da ação, que figurava como objeto direto, é alçado à função sintática de sujeito.
Ouçamos como o futebolista Richarlison narrou suas agruras na disciplina de educação artística: “Para vocês terem noção, eu reprovei em artes e… e… era meu tio, na época era meu tio que dava aula para mim. E aí… E aí… Eu falei ‘ah, não vou fazer nada, é meu tio, ele vai me passar, né’, e aí chegou o final do ano, e ele me reprovou”[6].
Note-se que convivem aqui “eu reprovei” e “ele me reprovou”: Richarlison sofre a reprovação, mas figura uma vez como sujeito e outra como objeto. A segunda construção acompanha o destaque dado ao agente (“era meu tio… era meu tio”).
Falamos assim todos os dias, especialmente quando não convém explicitar o agente. Muito melhor dizer “o vaso quebrou” que “eu quebrei o vaso”! No caso de exames clínicos, o agente é, em geral, pressuposto e adicionaria pouca informação pertinente: um hospital, um laboratório, uma clínica.
Desse modo, entre “o médico me testou”, “eu fui testado” e “eu testei”, o que há é uma série de possibilidades de expressão para comunicar diferentes aspectos de uma situação em que um agente testa e um paciente é testado, às vezes com ênfase no agente (“foi o próprio Dr. Drauzio Varella quem me testou”), mas em geral no paciente (“todos nós precisamos testar para o coronavírus”). O falante da língua vai assim escolhendo, dentre distintas possibilidades, aquela que mais convém para o que pretende comunicar.
Deu bom!
O complemento relativo ao resultado do teste tem precedente em expressões já consagradas, como “dar positivo” e “dar negativo”, ou, variando justamente para imprimir um tom mais formal ao discurso, “o resultado do meu segundo exame… acusou positivo”.
O fato de que expressões informais como “dar bom” e “dar ruim” (ou as mais consagradas “dar certo” e “dar errado”) sejam enunciadas como uma única unidade prosódica sugere que “dar positivo” e “dar negativo” podem até ser vistas por alguns falantes como expressões compactas, fechadas. Daí ocorrências ainda infrequentes, mas reveladoras, como “ele ‘negativou’, ou seja, não tinha mais o vírus”[7].
Nessas expressões, “positivo” e “negativo” parecem ir se comportando como advérbios, mais ou menos soldados ao verbo de acordo com o contexto. Afinal, ainda que em muito menor escala, vem-se empregando também “testar positivamente”. Já em 2001, lemos que uma mulher de 32 anos “testou positivamente para o HIV”[8]. Na pandemia, esse uso continua, ainda que à sombra de “testar positivo”.
Resumindo um pouco tudo isso, podemos invocar um curiosíssimo caso de retextualização. Um usuário da norma culta entendeu como equivalentes “o soro deste bovino havia sido testado com resultado positivo para anticorpos contra o vírus da leucose bovina” e “o soro deste bovino testou positivo para anticorpos contra o vírus da leucose bovina”[9]. Empregou a primeira no corpo do texto, e a segunda, no resumo, sugerindo que a variação é contextual, ditada por fatores comunicativos como a compactação da informação.
Gramática emergente
Mas a criatividade linguística continua a todo vapor, e alguns falantes vêm flexionando “positivo” e “negativo” de forma que não ocorreria com um advérbio. Uma busca simples no Google produz 4.320 resultados “testaram positivos” e 888 “testaram positivas”, pouco diante dos 352 mil “testaram positivo”, mas sem dúvida números expressivos: “cinco imigrantes que testaram positivos para o novo coronavírus”[10], “[u]m total de 153 mulheres (13,1%) testaram positivas para C. trachomatis”[11]. Nesses casos, os usuários trataram “positivos” e “positivas” como adjetivos que exercem a função de predicativos do sujeito.
O que dizer de interessantíssimo caso com duas frases sucessivas no mesmo enunciado, em franca variação? Veja-se: “Com o desenrolar da pandemia, porém, sugiram relatos isolados de quatro cães e um gato na China e outro felino na Bélgica que testaram positivos para o Sars-CoV-2. Todos tiveram contato com o vírus de tutores que também testaram positivo” [12].
Exemplos dessa ordem mostram que os usuários estão a todo momento processando o idioma, como bem aponta o linguista Paul Hopper, com a noção de emergent grammar; pois ela capta o caráter fluido da estrutura da língua, sempre adiada, sempre negociável na interação real. A gramática é vista assim como um fenômeno social. É assim que, em nosso caso, os usuários ora empregam formas flexionadas ao lado de formas não flexionadas, ora buscam equivalências e vão eles mesmo testando os limites da língua que falam.
Desse modo, se há cem anos, um médico não poderia “testar um paciente”, mas apenas examiná-lo, se há 50 anos, um sujeito não podia “testar para o novo vírus”, mas apenas ser testado, é perfeitamente possível que esses “novos” usos frutifiquem, como resultado do incessante tectonismo da língua.
[1] Disponível em: https://www.parabolablog.com.
[3] Ver: https://www1.folha.uol.com.br/
[4] Ver: https://www1.folha.uol.com.br/
[5] Ver: https://www.gazetadopovo.com.
[6] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?
[8] Ver: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe2609200102.htm.Ver: https://www1.folha.uol.com.br/
[9] Ver: https://www.scielo.br/scielo.
[11] Ver: https://www.scielo.br/pdf/csp/
[12] Ver: https://saude.abril.com.br/
[13] Imagem de Pixabay.
Como citar este artigo: Jornal da USP. Quem testa positivo foi contaminado por estrangeirismo? Texto de Eduardo Henrik Aubert e Marcelo Módolo. Saense. https://saense.com.br/2020/05/quem-testa-positivo-foi-contaminado-por-estrangeirismo/. Publicado em 13 de maio (2020).