UFMG
22/07/2020
Com muitas mulheres de fibra, compartilho a satisfação de “cumprir a sina, inaugurar linhagens, fundar reinos. Mulher é desdobrável. Eu sou”, como diria a poeta Adélia Prado. Repito o que afirmei em meu discurso de posse como reitora da UFMG: que o espaço que hoje ocupamos, que a visibilidade que hoje temos “sirva de modelo e exemplo a tantas jovens e tantas mulheres na necessária luta por emancipação, liberdade e igualdade de condições, e contra o preconceito e a violência que ainda vitimam tantas de nós”. Sou professora da área de estudos literários e culturais, trabalho com literatura comparada, em especial com mulheres na literatura. Não há como dissociar a acadêmica da gestora, da mulher em um cargo de liderança.
A UFMG completa 93 anos em setembro, e sou apenas a terceira mulher a ocupar o posto de reitora. Isso diz muito sobre a dinâmica das relações de gênero nas universidades – e não é diferente do que ocorre em outras universidades brasileiras e no exterior. Sou a primeira mulher a chegar à vice-presidência da Associação de Universidades Grupo Montevideo (AUGM). Não é menos significativo que as reitoras que me antecederam, professoras Vanessa Guimarães e Ana Lúcia Gazzola, sejam da área das Ciências Humanas. Se hoje mais de 50% das estudantes que entram na Universidade são mulheres, elas não estão, como sabemos, igualmente distribuídas pelas áreas de conhecimento. É notória a ausência das mulheres nas áreas de ciências exatas, o infame discurso da “aptidão das áreas” e a segregação ocupacional – na qual carreiras majoritariamente femininas são mais desvalorizadas. Segundo dados do Inep, apenas 5% das matrículas na área de engenharia são preenchidos por mulheres. Nas áreas de física, matemática e ciências da terra, esse índice é ainda menor – 3,7%. Por outro lado, 90% das matrículas dos cursos de serviço social, ciências da educação e enfermagem são ocupados por mulheres. É também de conhecimento de todos e todas que, à medida que alçamos a pirâmide acadêmica em cargos de destaque, o número de mulheres diminui consideravelmente – é o conhecido “efeito tesoura”, como nos lembra a professora Márcia Barbosa, estudiosa da situação das mulheres na ciência no Brasil.
O Índice de Desigualdade de Gênero, IDG (GII, Nações Unidas, 2017), é, no Brasil, um dos mais altos do mundo – o país ocupa a 92ª posição no ranking de 2019. O IDG é gerado com base em três dimensões: saúde reprodutiva, autonomia (empoderamento) e atividade econômica. O relatório do Fórum Mundial Econômico, publicado em dezembro do mesmo ano, revela, após análise de 153 países, que o Brasil ocupa o 130º lugar quando o assunto é igualdade salarial entre homens e mulheres. A participação feminina em cargos de chefia é a metade da masculina. Globalmente, temos uma das piores representações do gênero feminino no Congresso Nacional.
No entanto, o tempo atual é carregado de contradição. Se, por um lado, os dados são assustadores e vivemos momento de incerteza e possíveis retrocessos na agenda de demandas das mulheres, por outro, nunca tantas mulheres se identificaram tanto com a pauta em defesa dos direitos femininos e da igualdade de gênero. Trabalho na área desde o início da década de 1990, quando fui muitas vezes “acusada” de ser feminista e trazer para o Brasil um modelo importado dos EUA que não se adequava à suposta índole carinhosa e descontraída do brasileiro. Em outros termos, era como me dizer que participar da luta pela igualdade de gênero era descabido ou que eu, ao encampar essa luta, não estava me identificando com a índole nacional.
Se, por um lado, os dados são assustadores e vivemos momento de incerteza e possíveis retrocessos na agenda de demandas das mulheres, por outro, nunca tantas mulheres se identificaram tanto com a pauta em defesa dos direitos femininos e da igualdade de gênero.
Acredito que, como integrantes de uma universidade pública, nós, mulheres em cargos de liderança, temos de representar uma aposta no sentido contrário ao do cerceamento e do silenciamento que tentam nos impor: a aposta no diálogo, na reflexão crítica e na resistência. Não é pouca coisa, e não são pequenos os interesses em disputa. Vivemos momentos nos quais deve sobressair a elaboração de estratégias para resistir a uma desconstrução – que opera no campo material e prático, do estrangulamento de políticas públicas para as mulheres, e no campo simbólico, com a tentativa de minar a legitimidade de nossas lutas. É um afã antigo que precisamos todas abraçar, pois juntas somos e seremos sempre mais fortes.
Essa batalha se faz no meu cotidiano, no dia a dia de uma mulher gestora e pesquisadora. Nesse sentido, não poderia deixar de destacar algumas questões que têm-me afligido nos últimos anos e que acredito que as universidades devam tratar:
1. A construção do gênero e a falácia da diferença
Ficarmos apegadas a diferenças entre homens e mulheres não nos leva a lugar algum. É claro que não podemos ignorar que há diferenças biológicas entre os sexos, mas não podemos tratá-las como aspectos determinantes. Como diria Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Ou seja, não é o determinismo biológico que constrói a imagem das mulheres, mas, sim, uma construção social e cultural que diz o que devemos ser ou como devemos nos comportar e que opera por meio de uma rede de estereótipos, muitas vezes cruéis. Cito a escritora nigeriana Chimamanda Adiche: “O problema da questão de gênero é que ela descreve como devemos ser em vez de reconhecer como somos. Seríamos bem mais felizes, mais livres para sermos quem realmente somos, se não tivéssemos o peso das expectativas de gênero.” Creio que não preciso destacar que não existe, nas análises culturais ou científicas, algo que possa ser denominado como “ideologia de gênero” – se ideologia é um conjunto de crenças específicas de determinadas comunidades, a suposta ideologia de gênero, se existisse, demarcaria justamente as crenças em qualidades ou atributos inatos dos gêneros. Reconhecermos algo como inato ao gênero significa desacreditá-lo como construto social, agência discursiva ou repetição cultural, para compreendê-lo como característica natural.
2. A distância entre nós
Quanto antes entendermos este momento, melhor será para todas nós. Por isso, é importante falarmos de “mulheres” e de “ciências” – sempre no plural, destacando a diversidade e a diferença entre nós. Há toda uma dinâmica relacional de poder – que inclui diferenças significativas de classe, raça e etnia, sexualidade, idade, áreas do conhecimento – à qual não podemos estar alheias. Não podemos falar pelas muitas mulheres que hoje são silenciadas. Não podemos clamar por uma suposta irmandade e igualdade quando sabemos que umas são menos iguais do que outras. Assim, precisamos abrir caminho para que elas possam falar, para que possam se manifestar sobre suas experiências, que muitas vezes desconhecemos. Temos que entender que não podemos nos arvorar no direito de falar pelas outras mulheres que não temos como representar por questões éticas. É necessário criar condições para que essas mulheres possam falar e ser ouvidas – essa é uma responsabilidade ética de todas nós.
Ao relegar as mulheres ao lugar tradicionalmente ocupado por elas como cuidadoras, apagam-se a ação, a igualdade e os atributos pessoais como gestoras e se estabelece a diferença de gênero, preservando o masculino como o padrão.
3. Feminização da pobreza e a ética do cuidado
Tem sido reiteradamente mencionado que as diferenças de gênero em um país e seu desempenho social e econômico estão diretamente relacionados. O relatório global de gênero mostra que, como as mulheres representam metade da base potencial de talentos de um país, a competitividade de uma nação em longo prazo depende significativamente de como se educa e como se investe na igualdade de gênero. Não sem razão, desvelou-se durante esta pandemia algo já mencionado há bastante tempo: a feminização da pobreza. A pobreza, descobrimos todos e todas neste período, tem cor e gênero. Ela é feminina e negra.
Quando ouvimos o que se está dizendo sobre as lideranças femininas diante da pandemia, nos deparamos com questões antigas tratadas, há tempos, pelos estudos de gênero e feministas. Vejamos o que tem sido dito sobre o sucesso das mulheres em cargos de liderança que se destacam ao lidar com a pandemia – é o caso das primeiras-ministras da Alemanha, da Noruega, da Dinamarca, da Islândia, da Nova Zelândia e da presidenta de Taiwan. Muitas foram as hipóteses aventadas: sorte, diversidade de perspectivas (conceito comum para quem preza a igualdade de gênero) e, principalmente, o fato de serem mulheres e terem mais experiência com “o cuidar”. Pouco foi dito sobre suas qualidades como gestoras e administradoras. Chamo a atenção para o risco associado a mais esse estereótipo. Ao relegar as mulheres ao lugar tradicionalmente ocupado por elas como cuidadoras, apagam-se a ação, a igualdade e os atributos pessoais como gestoras e se estabelece a diferença de gênero, preservando o masculino como o padrão. O cuidar feminino é tradicionalmente desvalorizado, mesmo quando é supostamente bem-sucedido como estratégia de governo e ainda que elas tenham usado métodos completamente diferentes. Essa visão estereotipada apaga a liderança e os valores dessas mulheres como gestoras, contribuindo para confiná-las em espaço historicamente reservado pela tradição patriarcal – o espaço do lar, onde elas são cuidadoras e não gestoras.
Essa é apenas mais uma faceta da luta diária que, como mulheres e gestoras, precisamos enfrentar. Viemos de muito longe. Muitas foram as conquistas do esforço conjunto pela igualdade de direitos, pelo respeito e contra a violência e o preconceito. No entanto, considerando a desigualdade e a violência que ainda assolam nossa realidade, há ainda muito a ser feito. Há uma longa batalha pela frente, para a qual busco inspiração em Simone de Beauvoir: “Que nada nos limite. Que nada nos defina. Que nada nos sujeite.” Ou, como poetou Salete Maria, no blog Cordelirando:
“Lugar de mulher é dentro / Mas também pode ser fora / Lugar de mulher é centro / Que a margem não ignora / Lugar de mulher é leste / Norte, sul, também oeste / De noite, tarde e aurora
De minha perspectiva / Mulher não tem ‘um lugar’ / Onde quer que sobreviva / Pode ser seu habitat / Lugares existem zil / Eu mesma sou do Brasil / E vivo no Ceará!” [1]
[1] Artigo de Sandra Regina Goulart Almeida, reitora da UFMG.
Como citar este artigo: UFMG. Mulheres líderes: diálogo, reflexão crítica e resistência. Texto de Sandra Regina Goulart Almeida. Saense. https://saense.com.br/2020/07/mulheres-lideres-dialogo-reflexao-critica-e-resistencia/. Publicado em 22 de julho (2020).