Marcus Eugênio Oliveira Lima
05/07/2020
No dia 23 de abril de 2020, o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) divulgou um edital para as bolsas dos Programas de Iniciação Científica e Tecnológica (PIBIC e PIBITI). O edital exclui, pela primeira vez desde a criação dos programas de iniciação científica, no final dos anos 80, as áreas de ciências humanas e sociais do certame, quando estabelece: “As bolsas deverão estar vinculadas a projetos de pesquisa que apresentem aderência a, no mínimo, uma das Áreas de Tecnologias Prioritárias do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC)” [1]. As tais áreas estratégicas são: Tecnologias Estratégicas, Tecnologias Habilitadoras, Tecnologias de Produção, Tecnologias para o Desenvolvimento Sustentável e Tecnologias para Qualidade de Vida.
Como sabemos, a maior parte da pesquisa em humanidades não se enquadra nessas áreas tecnológicas, ficando excluídas do programa estratégico, que inicia a formação dos alunos em pesquisa. É daquelas medidas cujo objetivo a médio e longo prazo é matar a pesquisa na área, uma vez que não formando os novos pesquisadores (alunos de graduação em humanidades [2]), não haverá reposição dos antigos. Antes dessa norma do CNPq, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que é vinculada ao ministério da Educação e gere a pós-graduação no Brasil, já havia cortado bolsas de mestrado e doutorado, e proposto uma “readequação das regras de concessão de bolsas, privilegiando áreas e programas mais alinhados ao que Weintraub (Abraham Weintraub – ministro da Educação) considera relevante e de “retorno social imediato” [3].
A questão que nos colocamos é a seguinte: Por que os governos autoritários desprezam as humanidades? Talvez a imagem no início do texto ajude na resposta. O que você vê na imagem? Sente alguma ansiedade em resolver rapidamente a ambiguidade da situação e ter uma resposta exata, segura e sólida para o problema? Será que você é daqueles para quem “pau é pau, pedra é pedra” e se alguém me disser que pode ser outra coisa jogo nele!? Na psicologia social, uma dessas tantas áreas excluídas do fomento à pesquisa e pós-graduação por não trazer “retorno”, há duas teorias que ajudam a entender a “antipatia” dos governos autoritários para com as humanidades. Trata-se da teoria da personalidade autoritária [4] e da teoria da mente fechada (closed mind) [5], ambas surgidas entre as décadas de 1950 e 1960 para explicar o autoritarismo, que, como sabemos, havia levado a humanidade a um dos seus mais violentos genocídios na década de 1940. As duas teorias propõem que o aspecto central do dogmatismo e do autoritarismo é a necessidade de algumas pessoas de compartimentalizarem seu mundo social de forma rígida, dicotômica e maniqueísta.
Primeiro, no entanto, é preciso dizer que o governo do atual presidente da república não inventou a roda da intolerância às humanidades. No livro “Dictatorship and Political Police: The Technique of Control by Fear” de 1946, E.K. Bramstedt propõe que o nacional socialismo estava concentrado, essencialmente, em anular as forças intelectuais, uma vez que os inimigos do estado nazista eram mais identificados pelo seu caráter e ideias que pelas suas ações. Na antiga União Soviética, Stalin ordenou que o estudioso B. M. Kedróv produzisse uma classificação das ciências do país; no texto do especialista das mais de mil páginas, menos de duas foram dedicadas às humanidades, numa tentativa de negar a existência de “problemas sociais” e “humanos” no regime stalinista [6]. A literatura biográfica em ciência política aponta que a paranoia é um dos traços mais centrais na personalidade dos ditadores; a tal ponto que, por temerem que o pensamento crítico gere “conspirações”, eles se cercam de pessoas incompetentes, mas fiéis [7] e empreendem cruzadas contra a informação (imprensa) livre e o conhecimento. Os regimes ditatoriais buscariam algo parecido ao que encontramos na distopia construída por Ray Bradbury, em Fahrenheit 451, ficção literária que retrata uma sociedade futura em que os livros são proscritos e queimados pelo Estado.
Considerando que a perseguição às humanidades é algo comum a todos os regimes autoritários, vamos, agora, tentar responder porque, fazendo uso das noções das duas teorias referidas acima.
A Teoria da Personalidade Autoritária (TPA) foi formulada na década de 1950 por pensadores da Escola de Frankfurt, mais alinhados com a “esquerda” política. A teoria da mente fechada ou do Dogmatismo (TD), foi proposta por Milton Rokeach, um psicólogo social polonês radicado nos Estados Unidos, com o interesse de introduzir elementos do autoritarismo de esquerda na ideia original da TPA, que avaliava apenas o autoritarismo de direita. As duas teorias são, portanto, complementares.
Nas suas pesquisas a TPA verificou que as pessoas mais autoritárias relatavam experiências infantis de socialização com pais severos, que, entretanto, eram admirados de forma excessiva e não crítica. Havia nas falas dos entrevistados um sentimento ambivalente de ter sido vítima de uma tirania junto com o de idealização da figura paterna. Essas experiências infantis de socialização criariam um “estilo cognitivo” que a pessoa carregaria na sua vida adulta. Tal estilo revela uma adesão rígida a valores, uma dificuldade em lidar com situações ambíguas ou mal definidas, uma atitude negativa em relação à ciência e uma maior sugestionabilidade e superstição. Os mais autoritários também eram mais antissemitas e demonstravam mais hostilidade contra minorias religiosas, culturais e étnicas [4].
A teoria do Dogmatismo se propõe como uma teoria generalizada do autoritarismo. O dogmatismo é definido como (i) uma organização cognitiva relativamente fechada de crenças sobre a realidade, (ii) organizada em torno de um conjunto central de crenças sobre autoridade absoluta que, por sua vez, (iii) fornece uma estrutura para padrões de intolerância para com os outros[8]. Uma série de estudos mostram que quanto mais dogmáticas são as pessoas, menos empáticas e positivas são em relação aos outros, menos gostam de se relacionar com os outros e mais apresentam estreitamento temporal manifestado por uma tendência a negar a importância do presente e dar mais importância ao futuro. Todavia, mais relevante para nossa análise, Rokeach demonstrou que o dogmatismo estava relacionado à ansiedade a tal ponto que interferia no processamento de informações, reduzindo a capacidade analítica para examinar criticamente novas ideias e informações. De forma específica, os estudos mostraram que os dogmáticos se sentem ameaçados e evitam a exposição a informações discrepantes das suas crenças tradicionais, exibindo menor tolerância para com esse tipo de estímulo, pois não conseguem lidar com novos sistemas conceituais e organizar um novo conjunto de crenças. [9]
A verdadeira cruzada que vivemos no Brasil de hoje contra o conhecimento, de forma geral, e contra aquele produzido nas ciências humanas e sociais, de forma particular, pode ser entendida como uma luta contra o conhecimento que é ambíguo, que é capaz de ver, ao mesmo tempo, a moça e o militar na figura, que instaura uma esfera crítica e, por isso, ameaça o poder dos mal instalados [10]. Trata-se de um conhecimento que questiona a própria utilidade do conhecimento, propondo que os “saberes inúteis”, aqueles que não dão “retorno imediato”, podem nos permitir uma resistência à noção de utilidade dominante, pois ajudam a responder questões fundamentais sobre os usos da ciência, do tipo: para quem, por que, quando e como determinado conhecimento é útil ou inútil.
Bent Flyvbjerg afirma que humanidades, literatura e educação contribuem para a defesa dos valores da democracia, das liberdades, da justiça, igualdade, tolerância e solidariedade. Ou seja, a questão central da importância das humanidades no cenário mundial é a questão da possibilidade de análise crítica das relações de poder envoltas na produção, difusão e uso dos conhecimentos; considerando os interesses envolvidos, os riscos e os conflitos sociais [11]. Por isso elas incomodam tanto aos que têm mentes fechadas e interesses escusos.
Neste texto, procedemos a uma análise psicológica dos possíveis motivos que levam o autoritário a se sentir ameaçado diante daquilo que é híbrido, misto, ambíguo e complexo. Algo que, fugindo da lógica “pau é pau e pedra é pedra” causa ansiedade e comportamentos agressivos, que muitas vezes levam a tentativas de extermínio da diferença, como temos assistido cotidianamente contra a imprensa e contra o conhecimento crítico. No entanto, é importante referir que o autoritarismo é um fenômeno multicausado, que demanda outros níveis de entendimento além do “psicológico”, como refere Adorno:
“Quanto mais nos aprofundamos na gênese psicológica do caráter totalitário, tanto menos nos contentamos em explicá-lo de forma exclusivamente psicológica, e tanto mais nos damos conta de que seus enrijecimentos psicológicos são um meio de adaptação a uma sociedade enrijecida.” (p. 198) [12].
Por um lado, precisamos reagir enquanto sociedade para preservar o direito ao pensamento livre e crítico, e, por outro, mais específico, precisamos lutar pela manutenção do fomento à pesquisa em ciências humanas e sociais. Alguns dos links que deixamos podem ampliar a compreensão do tema e das teorias psicossociais citadas.
[1] http://www.cnpq.br/web/guest/noticiasviews/-journal_content/56_INSTANCE_a6MO/10157/8920772.
[2] Chamaremos neste texto de “humanidades” as áreas de conhecimento que integram ciências humanas, ciências sociais, letras, linguística e artes.
[3] https://www.plural.jor.br/artigos/um-governo-contra-as-humanidades/.
[4] Adorno, T.W., Frenkel-Brunswick, E., Levinson, D.J. & Sanford, R.N. (1950). The authoritarian personality, New York: Harper.
[5] Rokeach, M. (1960). The open and closed mind. New York: Basic Books.
[6] Coggiola, O. (2002). Ciências humanas: o que são, para que servem. Universidade e Sociedade, v. 12, n. 28, p. 143-154.
[7] Egorov, G. & Sonin, K. (2011). Dictators and their viziers: Endogenizing the loyalty–competence trade-off. Journal of the European Economic Association, 9(5), 903–930.
[8] Rokeach, M. (1954). The nature and meaning of dogmatism. Psychological Review, 61, 194-204.
[9] Vacchiano, R. B., Strauss, P. S., & Hochman, L. (1969). The open and closed mind: A review of dogmatism. Psychological Bulletin, 71(4), 261-273.
[10] Esse argumento foi desenvolvido em outro texto: Lima, M. E. O. (2019). Prefácio do livro “Preconceito e exclusão social: Estudos em Psicologia no Brasil”. Teresina: EDUFPI.
[11] Bent Flyvbjerg (2002). Making Social Science Matter: Why Social Inquiry Fails and How it Can Succeed Again. Contemporary Sociology, 31(5), 617.
[12] Adorno, T. W. (1972/2015). Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora UNESP.
[13] Imagem de Charlie Yoon por Pixabay.
Como citar este artigo: Marcus Eugênio Oliveira Lima. Por que as ciências humanas e sociais ameaçam os autoritários: Ansiedade e insegurança em relação ao ambíguo. Saense. https://saense.com.br/2020/07/por-que-as-ciencias-humanas-e-sociais-ameacam-os-autoritarios-ansiedade-e-inseguranca-em-relacao-ao-ambiguo/. Publicado em 05 de julho (2020).