Jornal da USP
09/09/2020

Queimada – Foto: Frans Krajcberg

Por Luciana Benassi Perroti, doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte (PGEHA-USP) e Edson Leite, professor titular do Museu de Arte Contemporânea (MAC-USP) e do PGEHA-USP

A diminuição da população indígena e o desmatamento desde o período colonial ocasionaram uma mudança muito acentuada na paisagem do Brasil. Nas primeiras décadas do século XVI, os estudiosos e artistas viajantes já expunham essa questão. Frans Post (1612-1680), por exemplo, pintou cenas do desmatamento brasileiro ocorrido no século XVIII; Félix Emile Taunay (1795-1881), com suas pinturas, instigou o receptor ao debate sobre o destino das florestas; Thomas Ender (1893-1875) produziu cerca de 780 aquarelas que dão testemunho de paisagens naturais alteradas pelo desmatamento e urbanização; no século XX e XXI é marcante o trabalho do artista e ambientalista Frans Krajcberg (Kozienice – Polônia, 1921 – Rio de Janeiro – Brasil, 2017), que, depois de uma trajetória de vida pontuada por perseguições, guerra e sofrimentos, trabalhou de forma surpreendente como artista plástico na denúncia da devastação da floresta amazônica e da Mata Atlântica.

De acordo com os dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Amazônia Legal corresponde à área da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), que abrange os estados de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará, Amapá, Tocantins, Mato Grosso e a parte oeste do Estado do Maranhão situada ao oeste do Meridiano 44º, possuindo uma superfície total de aproximadamente 5.015.067,749 km², o que corresponde a cerca de 58,9% do território brasileiro. O monitoramento dessa grande área vem sendo feito pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes). O mapeamento utiliza imagens do satélite Landsat, ou similares, para registrar e quantificar as áreas desmatadas. O Prodes considera como desmatamento a remoção completa da cobertura florestal primária por corte raso.

Com o aquecimento global, mudanças climáticas provocaram grandes queimadas em 2019 até mesmo no Alaska, Sibéria, Rússia, na savana da África Central, Europa e nos EUA, além da Austrália e do Brasil, sendo que, nos dois últimos casos, trata-se de florestas tropicais com grandes diferenças. Enquanto na Austrália a floresta tropical é seca e a grande maioria dos incêndios ocorre de forma natural, na Amazônia Legal a floresta tropical é úmida e os desmatamentos e incêndios são provocados em sua grande maioria pela ação direta do homem, que desmata e coloca fogo nas árvores derrubadas.

De acordo com informações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), divulgadas no dia 18 de novembro de 2019, os anos entre 1995 e 2004 foram os anos de maior ocorrência de desmatamentos por corte raso na Amazônia Legal, de 1988 a 2019, atingindo em 1995 o valor de 29.059 km² e em 2004 o valor de 27.772 km², em comparação com o ano de 2019 quando o valor atingiu 10.129 km² como podemos ver no gráfico a seguir.

Frans Krajcberg chegou ao Brasil pelo porto do Rio de Janeiro em 1949, e a partir de 1951 passou a participar das Bienais de São Paulo, recebendo o prêmio de melhor pintor nacional na IV Bienal de São Paulo, em 1957. Na década de 1970 a Amazônia passou a ser o centro das atenções do artista quando, com o amigo Sepp Baendereck, comprou um antigo contratorpedeiro da II Guerra Mundial, o Juruena, e o transformou em iate para dar início à subida do Rio Amazonas, Rio Negro e Solimões. Em 1978, a dupla levou o amigo e crítico de arte Pierre Restany, o que resultou no Manifesto do Rio Negro, ou Manifesto do Naturalismo Integral. Em 1980, o artista retornou sozinho a Belém para realizar trabalhos com cipó-titica. Mais tarde, Frans Krajcberg foi apresentado a João Meirelles Filho, com quem realizou quatro viagens ao município de Juruena. No diário de João Meirelles Filho de 1985 ficou registrado que Krajcberg só estava preocupado com a natureza, não queria ver boi, pasto, plantação, queria ver plantas novas, fotografar, encontrar material para trabalhar e ficar em lugares quietos e isolados onde pudesse desenvolver sua criação. Com essa sensibilidade, Krajcberg descartou o interesse em realizar obras para agradar aos comerciantes da arte e se dedicou a produzir uma arte-denúncia a favor da conservação do bioma Amazônia.

Na 32ª Bienal de São Paulo, intitulada Incertezas Vivas, Frans Krajcberg expôs três conjuntos de obras no espaço expositivo do pavilhão modernista com suas fortes características criativas; resquícios de madeira calcinada, troncos, cipós e raízes com pintura feita de pigmentos naturais nas cores vermelha e preta. Essa foi a última participação em vida de Frans Krajcberg em uma Bienal, o que nos permite concluir ter sido uma verdadeira coroação, para quem dedicou sessenta anos em defesa da natureza. Antes de sua morte o artista doou ao governo do Estado da Bahia o Sítio Natura, propriedade onde ele residia em Nova Viçosa, Bahia, com todo o seu acervo. A propriedade foi transformada no Museu do Ambiente, também chamado de Museu Frans Krajcberg.

Esculturas com troncos queimados – Foto: Frans Krajcberg

No Brasil, raros foram os artistas e intelectuais que, num gesto de desprendimento, legaram ao bem público o resultado material arduamente recolhido, cuidado, armazenado ao longo de uma vida, incluindo parte importante de sua obra e bens, como fez Frans Krajcberg. Com olhar perspicaz, ele conseguiu ver o que ninguém via, valorizando a plasticidade da matéria-prima bruta de árvores queimadas. Mudou várias vezes, saindo de um território a outro não só geográfico, mas também na maneira de pensar, demonstrando resiliência. Resistiu ao comodismo da sociedade e gritou ao mundo com palavras e ações contra a ação depredadora e a favor da preservação da vida.

Como citar este artigo: Jornal da USP. Frans Krajcberg e a arte-denúncia a favor da conservação do bioma Amazônia.  Texto de Luciana Benassi Perroti. Saense. https://saense.com.br/2020/09/frans-krajcberg-e-a-arte-denuncia-a-favor-da-conservacao-do-bioma-amazonia/. Publicado em 09 de setembro (2020).

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