Jornal da USP
25/03/2021

(Imagem de Hans Braxmeier por Pixabay)

Por Jean Pierre Chauvin, professor da ECA/USP.

(Salutatio)

Excelentíssimo Senhor, aceite meus cumprimentos.

(Narratio)

Provavelmente, Vossa Excelência não me conhece (a não ser que eu esteja sendo monitorado por algum órgão do território). Embora atue como professor da maior universidade do País, não tenho feitos notáveis (descontado o fato de lecionar há mais de vinte anos e, no período de uma década, entre a Universidade Metodista, o Centro Paula Souza e a Universidade de São Paulo, ter orientado uns cinquenta e poucos alunos na graduação e pós-graduação).

Vossa Excelência acreditaria se dissesse que tento proporcionar às(aos) estudantes a educação que recebi em casa, no jesuitíssimo Colégio da Companhia de Maria e nos cursos laicos que fiz dentro e fora da USP? Digo-o humildemente, fique claro. Como me graduei em uma instituição de ensino superior pública e gratuita de excelente qualidade – onde aprendi uma porção de coisas com notáveis mestres – busco fazer algo minimamente parecido, em diálogo com colegas de várias unidades.

Não sei, efetivamente, o que Vossa Excelência pensa a esse respeito; mas, a meu ver, toda forma de conhecimento (verificável) é válida e tem a sua relevância, seja o cálculo sobre a distância dos astros, galáxias e buracos negros a milhares de anos-luz; a inovação de procedimentos cirúrgicos; a pesquisa por documentos que auxiliam a entender o passado; o ensino de línguas e de álgebra, aritmética, trigonometria; as artes que existem pelo menos desde o século V a.C., como a Retórica de Aristóteles, a Epístola aos Pisões, de Horácio, a Instituição Oratória, do Quintiliano, o tratado Do Sublime, de Longino, do século III etc.; os episódios transcorridos no Estado do Brasil, entre 1500 e 1822 etc.

Em meu caso, atuo dentro da grande área de conhecimento que os órgãos de fomento costumam denominar Humanidades ou Ciências Humanas, na Área Letras, Subárea Literatura, Especialidade Literatura Luso-Brasileira – o que me permite dizer algo sobre as raízes da administração, economia, política, sociedade e cultura vigentes em nosso país.

Digo “nosso país”, Vossa Excelência bem o reconhece, porque só passamos a existir sob esta designação a partir de 1822[1]. Por sinal, o bicentenário da Independência (que também nasceu da pressão inglesa) coincidirá com a eleição presidencial. Isso, é claro, se sobrar país ou território a governar.

(Argumentum)

Refiro-me a esse amontoado de coisas porque quem estuda o chamado período “colonial” (entre os séculos XVI e XVIII) logo reconhece a permanência de resquícios do Reino português e do Império brasileiro, numa terra que cultiva o discurso da modernidade conservadora.

Ilustrando melhor, há pelo menos três chagas abertas desde o século XVI, despejadas diariamente sobre nossos corações e mentes[2]: 1. A Desigualdade Social (vide os preconceitos de raça, cor, gênero, credo, idade, profissão, posição social etc.); 2. A Manutenção dos Privilégios (por aqueles que legislam, julgam e executam os códigos, decretos e leis); 3. A Postura Negligente (de pessoas civis, entidades políticas e instituições).

Menciono apenas três problemas porque os manuais que ensinavam a escrever cartas[3] (Ars DictaminisArs Dictandi), que remontam pelo menos ao século IV anno Domini, recomendam que sejamos decorosos, elegantes, claros e breves, mormente quando dirigimos missivas ou epístolas a pessoas de condição superior a nós, seja pelo posto que ocupam, seja pela idade que acumulam, seja pelo conjunto de suas atribuições.

Retomemos as questões a que me referia. Sobre o tópico Desigualdade Social, transcrevo dois artigos, um extraído das Ordenações Filipinas, de 1603; outro, do Código Criminal do Império do Brasil, editado em 1830. Eles podem ser lidos sem receio ou melindre, pois são relativamente fáceis de entender:

“Qualquer que arrenegar, descrer, ou pezar de Deos, ou de sua Santa Fé, ou disser outras blasfemias, pola primeira vez, sendo Fidalgo, pague vinte cruzados, e seja degradado hum anno para Africa. E sendo Cavalleiro, ou Scudeiro, pague quatro mil reis, e seja degradado hum anno para Africa. E se for peão, dem-Ihe trinta açoutes ao pé do Pelourinho com baraço e pregão, e pague dous mil reis” (Ordenações Filipinas, Vol. 5, Título II, 1603).

“Se o réo for escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital ou de galés, será condemnado na de açoutes, e depois de os soffrer, será entregue ao seu senhor, que se obrigará a trazel-o com um ferro pelo tempo, e maneira que o juiz designar” (Código Criminal, Art. 60, 1830).

Quanto aos Preconceitos (todos), é curioso que eles convivam em nossa província constituída por homens e mulheres “de bem”, apesar de a nossa legislação prever o contrário. Bastaria rever o que diz a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988.

Essas matérias parecem-me essenciais, pois os deveres que não contemplam direitos, as liberdades que não combatem desigualdades, a modernização que anula as seguridades sociais resultam em balelas, posto serem incompatíveis com um país desta grandeza.

No que diz respeito à palavra Negligência, seria prudente grafá-la no plural (Negligências), porque elas são muitas e, repare, Vossa Excelência, vinculam-se a um Estado, não por acaso este, em que imperam desigualdades, preconceitos e manutenção de privilégios.

(Quaestio)

Isto posto, digo a Vossa Excelência que recebi com espanto a notícia de que o líder do governo teria afirmado, hoje, durante entrevista por ele concedida, que a situação do Brasil é “confortável”, se “comparada a de outros países” do mundo. Vossa Excelência me perdoe, mas não alcanço o teor e sentido dessas palavras. Como não li o livro do Coronel que torturava, tampouco as obras monumentais de pseudofilósofos admirados por alguns ministros sediados no Distrito Federal, pediria que me iluminasse, neste tocante: de que “Mundo” ele estava a falar? “Situação confortável” para quem?

Para os quase trezentos mil mortos pelo vírus da covid-19 não pode ser, pois lamentavelmente deixaram de existir. Para os familiares, parentes, amigos e colegas dos que morreram, obviamente não. Para mim (e as pessoas com que mantenho contato) tampouco.

Será que se entristecer é uma competência fora de moda? Acontece apenas com os “covardes” que adotam medidas preventivas contra a propagação do vírus? Ou as pessoas incapazes de odiar também são incompetentes em se sentir bem nesta província quatrocentona, contraditória e violenta que leva o nome de uma commodity?

(Petitio)

Chegamos à petição, penúltima parte de uma carta composta segundo as regras do gênero [carta], assunto [cuidado do povo] e estilo [humilis]. Por esses e muitos outros motivos, suplico a Vossa Excelência que me perdoe por publicar estas maltraçadas linhas.

De toda maneira, apelo a sua Magnificência para que as considere como uma tentativa de diálogo sensibilizador. Melhor dizendo, um apelo para que as pessoas de vosso convívio deem exemplo e, eventualmente, refutem os cidadãos que não detectam patriotismo, competência, honestidade ou coerência em determinadas ações.

(Dimissio)

Muy cordialmente,

(Subscriptio)

O súdito Jean Pierre Chauvin, em Piratininga, aos 17 dias de março de 2021 a.D.

[1] Sobre esse tópico, sugiro vivamente a leitura do livro de Evaldo Cabral de Mello, Um imenso Portugal: história e historiografia (2002).

[2] Alusão à canção homônima dos Titãs, faixa do álbum Jesus não tem dentes no país dos banguelas (1987).

[3] A esse respeito, recomendaria aos assessores de Vossa Excelência o notável estudo de James Murphy, Rhetoric in the middle Ages, publicado em 1974; a ótima síntese de Martin Camargo, Ars dictaminis, ars dictandi, editada em 1991; ou a coletânea organizada por Emerson Tin, A Arte de escrever cartas, que saiu pela Editora da Unicamp em 2005.

Como citar este artigo: Jornal da USP. Carta para o presidente de uma província.  Texto de Jean Pierre Chauvin. Saense. https://saense.com.br/2021/03/carta-para-o-presidente-de-uma-provincia/. Publicado em 25 de março (2021).

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