Embrapa
24/09/2021

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As tesourinhas (Tyrannus savana) já chegaram ao Sudeste brasileiro. São pequenas aves, com caudas longas, vindas da Amazônia, e que retornam ao Cerrado no início da primavera, com as chuvas, para a reprodução. “Sabem” que em breve chegarão as revoadas de cupins e cortadeiras (as tanajuras), que têm seu ciclo de vida regulado pelas chuvas. No entanto, apenas a chegada das tesourinhas não nos dará certeza de que as águas chegarão logo.

Os ciclos vitais são vistos, sentidos e interpretados desde a nossa mais remota ancestralidade, por motivos óbvios: a evolução de nossa espécie, e consequente sobrevivência, dependeu e depende de nossa capacidade de ler as frases que a natureza “escreve”. Não podemos mais nos comportar como analfabetos ecológicos, que não fazem correlações, sob pena de sofrermos mais frequentemente com penúrias por imprevidências. Os grupos humanos que eram sensíveis às nuanças temporais e aos ciclos naturais reordenavam suas ações, sempre em busca de mais alimento e proteção. Dá-se agora o mesmo.

A agricultura, criada a partir da observação dos processos naturais de nascimento, crescimento e morte sempre esteva adaptada às condições locais, utilizando as espécies da região. A colheita das sementes sempre foi o primeiro passo para assegurar o alimento.

A atitude de colher sementes para a alimentação e/ou para a futura semeadura é de fácil compreensão atualmente, mas envolveu um olhar mais cuidadoso para o entorno (quando colher) e seus componentes (o que colher). De lá para cá, as decisões tomadas por nossa sociedade na gestão da paisagem envolvem avaliações preliminares que objetivam o produto (uma nova cidade, um bairro, chácaras, uma produção agropecuária) e sua logística/mobilidade. No entanto, a resiliência dessa paisagem antropizada certamente será prejudicada com intervenções descuidadas. Com eventos extremos batendo à porta com frequência cada vez maior, a fragilidade aumenta. Os desequilíbrios decorrentes da fragilidade do sistema exigem energia externa, derivadas do petróleo (inseticidas, fungicidas, herbicidas e adubos sintéticos), que intoxicam o sistema e têm alto custo financeiro.

O avanço tecnológico contínuo criou uma percepção de que estávamos em luta com a natureza e a “nossa” vitória era questão de tempo. O tempo trouxe às claras nossa total dependência das leis naturais e seus ciclos. Sobre esse assunto, o filósofo Grego Antífonte, cinco séculos antes de Cristo, nos deixou essa reflexão: As normas legais são acessórias, as naturais são essenciais.

Mesmo com a chegada das águas em setembro, caso ocorra, não teremos garantia de continuidade nem de abundância. Os veranicos são comuns no Cerrado. Após as primeiras águas, podemos ficar por mais de 20 dias sem chuva, ou mais. Ou seja, temos um ciclo de seca dentro do período chuvoso. E quando chegam as chuvas firmes, que em curto tempo despejam volume de água superior ao comportado pelas calhas impermeáveis das cidades, ocorrem enchentes e desmoronamentos. Campos destruídos, ano após ano, com solos expostos, compactados, assoreamento de rios e enchentes.

É cada vez mais necessário manejar a paisagem promovendo a cobertura do solo, optando pelo plantio direto, de grande importância na redução da erosão, pois impede o impacto direto da gota d’água sobre o solo. Essa cobertura vegetal, cada vez mais indispensável, favorece a infiltração da água e forma uma camada protetora que evita o superaquecimento do solo e a rápida perda da água por evaporação, a caminho de uma agricultura mais próxima dos padrões da natureza.

As queimadas no Cerrado, predominantemente provocadas por causas antrópicas, têm como uma das motivações a “limpeza de pastos” antes das chuvas, ampliam os problemas respiratórios, prejudicam a infiltração das águas e eliminam espécies importantes para a agricultura, acima e abaixo do solo. O fogo elimina grande parte da macro e microvida do solo. São queimados muitos insetos benéficos que atuam no controle biológico natural e reduzem os danos de insetos fitófagos. A visão de conjunto é necessária para que tal perspectiva inclua os malefícios e não apenas os supostos benefícios imediatos da queimada.

Distribuindo as águas para milhares de córregos, regatos, rios e mananciais subterrâneos por todo território brasileiro, promovendo a vida abundante: assim era o Cerrado, que por milhares de anos captou as chuvas vindas dos oceanos e do próprio continente. O Cerrado que resta ainda abastece oito das 12 maiores bacias hidrográficas do Brasil.

A leitura e entendimento dos sinais cada vez mais claros implicam transformar as práticas que atualmente destroem o Cerrado e a Amazônia, corrompem os ciclos naturais milenares e promovem prejuízo coletivo. Os rios voadores, vindos da Amazônia, com seus fluxos alterados, impactam diretamente a qualidade de vida de quem mora e planta na região Sudeste. Tais conexões, antes desconhecidas, são evidentes e precisam ser absorvidas. Promover a proteção do solo é um indício de que entendemos as mensagens. [2]

[1] Foto: https://www.wikiaves.com.br/wiki/tesourinha.

[2] Texto de Walter José Rodrigues Matrangolo (Pesquisador da Embrapa Milho e Sorgo-MG).

Como citar este artigo: Embrapa. Quando a chuva chega ao sertão! Texto de Walter José Rodrigues Matrangolo. Saense. https://saense.com.br/2021/09/quando-a-chuva-chega-ao-sertao/. Publicado em 24 de setembro (2021).

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