Jornal da USP
22/11/2021
Parece paradoxal falar em crise hídrica em um país que detém entre 12% e 16% de toda a água doce do mundo; que dispõe de 33 mil m3/hab/ano, o que é 19 vezes superior ao mínimo estabelecido pela ONU, suficiente para abastecer 57 vezes a demanda nacional. Um país banhado pelas bacias hidrográficas mais caudalosas do mundo e que, estando na faixa tropical e com um vasto litoral voltado para o Oriente, recebe continuamente grandes volumes de água vindos do oceano via evaporação/precipitação, além dos jatos de baixa altitude (os chamados rios voadores).
É difícil conceber uma crise hídrica em um país que detém aquíferos gigantescos, sendo que apenas o Alter do Chão teria água para abastecer toda a humanidade por 350 anos. Além disso, segundo Hirata, “a água subterrânea é o recurso mais extraído do subsolo brasileiro. O total de água bombeada, pelos mais de 2,5 milhões de poços tubulares, supera os 17.580 Mm3/ano (557 m3/s), ou seja, volume suficiente para abastecer a cada ano a população brasileira”.
Portanto, não existe crise hídrica no Brasil, mas, sim, crise de gerenciamento hídrico. Um gerenciamento negligente e ineficiente, que permite, por exemplo, que o menor índice de acesso à água potável ocorra na Região Amazônica, exatamente onde há mais água… no mundo!
Um gerenciamento que parece não considerar os dados das séries históricas que mostram detalhadamente o comportamento do regime pluviométrico. Regime que nos revela que, ocasionalmente, há anos com menos chuvas, como em 1963, quando choveu apenas 887 mm, enquanto a média seria 1.450 mm na cidade de São Paulo. Naquela ocasião, a represa Billings praticamente secou, mas como em 1964 choveu 1.239,3 mm, qualquer plano de obras já poderia ser engavetado, pois a natureza foi generosa nos anos seguintes.
Depois, em 2013/14, choveu 1.497,3 mm, dentro da média, mas mesmo assim, dizia-se que era a maior estiagem dos últimos 80 anos.
Mas eis que a natureza não é regular como nossa limitação gerencial gostaria que fosse e, em 1983, choveu muito: 2.228 mm, dos quais 230 mm apenas em junho, quando a média para o mês é de 55,5 mm, e quase 330 mm em fevereiro, quando a média para o mês é de 220 mm.
Estes dados existem desde 1936 e deveriam subsidiar a gestão hídrica, para não sermos pegos de surpresa quando chove menos ou chove demais. Este ano de 2021, por exemplo, ao contrário do que se diz, até agora está chovendo acima da média (989 mm para uma média de 923 no período medido). E observem no gráfico que a linha de tendência é ascendente, ou seja, o volume total de chuvas tende a aumentar na RMSP, e não a diminuir.
As bacias do Centro-oeste estão com menos água? É o que estamos vendo; mas por quê? Desmata-se até o último hectare na ilusão de se aumentar a produtividade. Resultado: os rios são assoreados e perdem capacidade de vazão; os solos e o clima local ficam mais secos, o que favorece as queimadas, tsunamis de poeira etc. Lembramos também que o desmatamento da Amazônia diminui a carga de umidade dos jatos de baixa altitude e, consequentemente, altera o clima regional. Sobre esses assuntos, a Revista Pesquisa Fapesp n. 285 (2019) traz uma série de estudos que mostram o quanto a preservação da floresta contribui com a produtividade.
Mais difícil ainda é conceber uma crise hídrica no Sudeste, a segunda região mais úmida do País. Poucas metrópoles do mundo dispõem de tanta água quanto a RMSP e, mesmo assim, o fantasma do racionamento volta a nos rondar.
Então vamos aos fatos: apenas a represa Billings poderia abastecer muitos milhões de pessoas, mas ela é completamente subutilizada, já que recebe diariamente cerca de 800 toneladas de esgoto e cerca de 500 toneladas de lixo. A Billings tem capacidade de armazenamento de nada menos do que 1,2 bilhão de litros. Mas apesar dessas dimensões enormes, ela abastece apenas cerca de 1,5 milhão de pessoas, extraindo-se água de alguns trechos menos poluídos.
Já o sistema Cantareira tem menos água (982 milhões de litros de capacidade total), mas abastece uma população cerca de 5 a 6 vezes maior do que a Billings (por isso ele seca, por superexploração, e não por falta de chuva). Em 19 de outubro de 2021, este sistema estava com 28% de sua capacidade (277,5 milhões de litros) e, mesmo assim, atendia 7,2 milhões de pessoas. Se essa mesma proporcionalidade “volume de água x população atendida” fosse transferida para a Billings, seu volume total de 1,2 bilhão de litros teria um potencial de abastecimento de 32,4 milhões de pessoas. Claro, se estivesse limpa e tratada. Se não está, isto é um problema de gerenciamento hídrico e não de crise hídrica.
Temos água em abundância, mas suja. E não somos capazes de parar de poluir, nem de tratar em um ritmo que possa atender à demanda. Vejam que irracionalidade: poluímos o que temos (Billings, Guarapiranga, rios Tietê, Pinheiros, Aricanduva, Tamanduateí etc.) e vamos buscar água mais limpa cada vez mais longe (São Lourenço, Piracicaba, Paraíba do Sul). E o caso do Projeto Tietê é emblemático: completará 30 anos em 2022 e continua fétido.
E assim seguimos sendo um dos países mais ricos em recursos hídricos, mas com 11 milhões de habitantes sem acesso sequer à água limpa para beber e 40 milhões que não recebem água de forma regular, o que é agravado com o fato de apenas 43% do esgoto produzido ser coletado e tratado no País.
A crise de abastecimento hídrico é resolvida com obras, como a transposição do Rio São Francisco, como o programa Um Milhão de Cisternas, com tratamento de esgotos que interrompa a poluição dos recursos hídricos, com o aumento da capacidade técnica de tratamento e distribuição de água e aumento da interligação entre os sistemas, com a preservação das matas ciliares, com campanhas para o uso racional quantitativo e qualitativo (hoje, a mesma água que bebemos usamos para dar a descarga). Enfim, a crise de abastecimento hídrico equaciona-se com planejamento subsidiado pela ciência, obras e gestão eficiente, e não com rezas e torcida para que chova sobre o sistema Cantareira.
E agora, com o fim da estação seca e início da chuvosa, o tema “crise hídrica” será substituído por “deslizamentos de terra e inundações”. E as explicações – ocupações irregulares em encostas e fundos de vale, impermeabilização do solo e assoreamento dos rios – serão substituídas por um simples “choveu muito”! [2]
[1] Foto: Hamilton Breternitz Furtado, Wikimedia commons, CC BY 3.0.
[2] Texto de Luis Antonio Bittar Venturi, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Como citar este artigo: Jornal da USP. Crise hídrica ou de falta de gerenciamento hídrico? Texto de Luis Antonio Bittar Venturi. Saense. https://saense.com.br/2021/11/crise-hidrica-ou-de-falta-de-gerenciamento-hidrico/. Publicado em 22 de novembro (2021).