UFRGS
04/04/2022

Pesquisa aborda obras de mulheres compositoras para o violão e discute a desigualdade de gênero na música
Foto: Poucos meses após defender uma dissertação pioneira sobre mulheres violonistas, Mayara Amaral foi vítima de feminicídio em Campo Grande. (Reprodução)

Uma dissertação de mestrado defendida na última terça-feira, 29, no Programa de Pós-graduação em Música da UFRGS retrata a desigualdade de gênero no campo musical ao mesmo tempo que apresenta a trajetória profissional e pessoal de compositoras violonistas de diferentes estilos e períodos históricos. Realizado pela pesquisadora Thaís Nascimento Oliveira, com orientação da professora Isabel Nogueira, o trabalho mostra que o repertório das provas específicas para a entrada no curso de Música das universidades estaduais e federais do Brasil é formado inteiramente por obras de autoria masculina.

Ainda durante o bacharelado, Thaís se deparou com a notícia do feminicídio sofrido pela violonista Mayara Amaral, morta no dia 25 de julho de 2017, em Campo Grande (MS). A musicista havia defendido uma dissertação pioneira na pesquisa sobre mulheres violonistas da década de 1970, o que sensibilizou e motivou Thaís a continuar pesquisando o assunto. “Gerou uma desconstrução muito profunda em mim a notícia, não que eu não soubesse de violências até o momento, mas a gente acaba naturalizando, infelizmente. E aí eu passei a desnaturalizar [a violência] com esse caso, também por ter-me identificado. Foi uma mulher violonista que à época tinha a minha idade”, relata.

Logo nos primeiros capítulos da dissertação, Thaís apresenta uma discussão sobre música e gênero, sobre o que é feminismo e por que os movimentos feministas na sua pluralidade originaram o campo dos estudos de gênero. Mas o trabalho vai muito além disso: para a musicista, além de debater o assunto, também é preciso conhecer as compositoras e incentivar que suas obras sejam tocadas. “Eu sempre quis focar nessa discussão de gênero, mas trazendo exemplos para provar que existem [compositoras para violão] porque eu acho que a gente tem que interpretar o repertório para transformar essa realidade”, explica Thaís. Por isso a pesquisa apresenta a trajetória e obra de cinco compositoras para violão: Mademoiselle Bocquet, Emilia Giuliani, Catharina Pratten, Clarisse Leite e María Luisa Anido. 

A escassez de informações sobre as mulheres violonistas já é um indício da falta de interesse por difundir e tocar obras que não sejam compostas por homens. Mesmo tendo um trabalho relevante no campo, o próprio nome da “Mademoiselle” Bocquet ainda é desconhecido, e esses são justamente os pontos abordados no trabalho, conforme relata Thaís. 

“Eu trago essas obras a partir das trajetórias das compositoras, problematizando isso, problematizando a causa de não sabermos o nome da Mademoiselle, de quase ninguém tocar a obra da Clarisse Leite, que é compositora brasileira e tem uma vasta obra. Ela criou concursos de instrumentos no Brasil, e cadê? Não é tematizado” 

Thaís Nascimento Oliveira

Thaís ressalta que, mesmo que as obras das compositoras tenham características similares às dos compositores, essa não é a abordagem que ela procurou trazer para o trabalho, porque usar requisitos de homens para defender o repertório de mulheres não é o ideal. Por isso, complementa, apresentar as obras e as partituras das compositoras e mostrar o repertório que é ignorado no ensino da área é de grande importância para que a discussão ultrapasse o discurso e vá para a prática musical, o que pode transformar o imaginário social de que as mulheres não podem ocupar os programas de repertório.

Importância do incentivo nas salas de aula

Um dos resultados mais expressivos da dissertação é em relação aos currículos escolares do curso de Música das universidades brasileiras. Isso porque, para adentrar na graduação, os candidatos passam por provas específicas que já trazem um repertório de obras definidas a serem apresentadas na avaliação. A pesquisa, porém, indica que em nenhum programa das universidades públicas do Brasil há obras de mulheres compositoras. “Os professores que constroem os currículos muitas vezes dizem que não pensam em gênero. Já ouvi muito isso. Mas, se não pensam em gênero, por que só trazem homens compositores?”, questiona a pesquisadora.

Segundo Thaís, deve-se levar em consideração também o fato de o violão por si só já ser um instrumento que tem menos incentivo social para ser tocado por mulheres. Comparado ao canto, por exemplo, que tem uma expressão de feminilidade forte, o violão é tradicionalmente mais executado por homens. “Isso porque a gente quase não toca compositoras. Às vezes ou não se conhecem, ou conhecemos apenas grandes cantoras intérpretes, que cantam porque estão interpretando música de outros compositores, expressando as visões de mundo desses homens. Esse processo de criar é filosófico e também político, pois colocamos nossas ideias de mundo que só se tornam conhecidas se nosso repertório é interpretado ao longo dos anos”, explica. 

O trabalho continua

Além de mostrar que as obras das compositoras para violão existem e discutir as estruturas que levam à desigualdade de gênero na música, Thaís também apresentou um levantamento com as partituras e links de obras de mais de 300 compositoras de diferentes épocas e estilos. De acordo com a pesquisadora, essa é uma parte muito importante do trabalho: incentivar que as pessoas toquem de fato aquelas composições que, por muito tempo, foram deixadas de lado, e colocar a mulher como protagonista. “No trabalho, eu coloco um pouco da forma [das obras], mas também explico o sentido, o que podem ter sido as intenções das compositoras, o que pesquisei em algumas referências disponíveis sobre elas e relacionei às suas trajetórias, com seus processos criativos, para conhecer mais as visões das compositoras e, assim, melhor interpretar o repertório”, acrescenta Thaís.

Enquanto musicista, Thaís também desenvolve projetos que colaboram para que as obras das compositoras sejam interpretadas e difundidas, como a Associação Internacional de Violonistas Compositoras (AIVIC), fundada por ela em parceria com Ximena Matamoros, do Chile, e Laura Campanér, de São Paulo. A pesquisadora também ministra oficinas de violão voltadas a mulheres, projetos de ensino diversos e realiza lives em suas redes sociais em que toca obras de compositoras. [1]

[1] Texto de Geovana Benites.

Como citar esta notícia: UFRGS. Pesquisa aborda obras de mulheres compositoras para o violão e discute a desigualdade de gênero na música. Texto de Geovana Benites. Saense. https://saense.com.br/2022/04/pesquisa-aborda-obras-de-mulheres-compositoras-para-o-violao-e-discute-a-desigualdade-de-genero-na-musica/. Publicado em 04 de abril (2022).

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