Jornal da USP
19/07/2022

Retrato estatístico do Brasil
[1]

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

Vários escritores retrataram o Brasil, da Casa Grande à Senzala. Revelaram suas raízes, tristezas de sua gente, suas vidas secas. Anos eleitorais exibem o Brasil de outra forma, por meio de números, agrupando a população de acordo com a renda.Em 2022, o desenho estatístico dos brasileiros apresenta a seguinte tendência: 52% possuem renda de até dois salários-mínimos, 33%, de dois a cinco salários-mínimos, 11%, de cinco a dez salários-mínimos e 4% acima de dez salários-mínimos.

As pesquisas eleitorais (DataFolha), realizadas logo após a morte do antropólogo Bruno e do jornalista Dom (em momento de fome, atingindo mais de 30 milhões de pessoas, seguido de denúncias de corrupção no MEC) mostraram crescimento do eleitorado de Bolsonaro de 32% para 42%, entre aqueles que ganham de cinco a dez salários-mínimos. A pesquisa também indicou, 41% das pessoas apoiando Bolsonaro e 35% apoiando Lula, entre a população com rendimentos acima de dez salários-mínimos.

Outra pesquisa, citada por Carlos Eduardo Lins da Silva (Jornal da USP, 27 de junho de 2022), revelou que 54% dos brasileiros evitam as notícias. A média mundial é de 38% e os jovens são aqueles mais voltados para a negação das informações. O motivo citado no artigo sugere serem os temas debatidos desagradáveis e repetitivos. No Brasil o número de alienados, com os problemas brasileiros, é maior que a média mundial. São 42%.

Como explicar a insensibilidade social e pessoal da parte mais rica da população brasileira (empresários e população com maior escolaridade) frente aos fatos ocorridos? Algum vínculo com a dificuldade de consolidação da terceira via, do caminho do meio? Que doença infectou a prudência, o equilíbrio e a relatividade das coisas?

Fiz uma pesquisa pessoal para conhecer as justificativas de apoio a Bolsonaro e encontrei as seguintes respostas, na faixa de dois a dez salários-mínimos:

“O Brasil é muito grande não dá para resolver o problema dos povos originários”.
“A corrupção é inevitável. O homem é ruim mesmo”.
“Política não adianta discutir, não muda. É só corrupção”.
“Não vai melhorar. O preço das coisas vai continuar subindo”.
“Eu mal consigo resolver os meus problemas, vou me preocupar com os problemas dos outros, que nem conheço? Hoje em dia o lema é: Salve-se quem puder”.

A síndrome do avestruz assola o Brasil e o mundo. É grande número de alienados, indiferentes aos temas sociais, propagadores de mentiras, recheadas de ódio contra as instituições e as pessoas. O número varia de 25% a 30% da população. Suas crenças são rígidas e imutáveis. Seus sonhos, não raro, ligados à violência e as armas.

O poder dos tiranos tem origem na da linguagem. Seus algoritmos transformaram a comunicação. Contribuíram para o desmemoriar dos brasileiros. Esquecimento de palavras e da produção de sentidos. Hoje, nem o número do telefone dos amigos ganha lugar na nossa memória

Os vocábulos, orações e vozes variadas alicerçam o mundo em que vivemos. Delegamos este poder, de organizar as ideias em sistema, para o Google. Sobrou a interpretação, lugar de potência.

Quem são as personagens do grupo – de cinco a dez salários-mínimos e de dez salários-mínimos ou mais – capazes de articular ou conviver com a prática política do ódio, com a desarticulação das instituições, da sociedade civil e do meio ambiente? O que falam e pensam as pessoas deste grupo? O que fazem com as palavras? O que explica o total desinteresse pela polis (rua, cidade, Nação)?

Para estimular a reflexão apresento ao leitor uma personagem fictícia, um fantasma endiabrado. Ele faz parte do grupo de dez salários-mínimos ou mais. Endiabrado ascendeu socialmente à custa de muito esforço. Competiu, trabalhou e galgou um lugar ao sol. É um vencedor. Ganha cinco, dez, mil salários-mínimos. Construiu a sua identidade por meio de uma narrativa consolidada, produzida no pós-guerra: o self made man. Época de crescimento econômico.

A vida, como ela é, o treinou para a cegueira. Considera as emoções perigosas. Bom pai ensina para o filho jamais confiar em ninguém. Desconfiar sempre é o seu mantra. Descrente da humanidade evita sociedades com desconhecidos, fora da família nuclear. Afinal, diz ele para o filho: “É melhor só do que mal acompanhado”. Prefere dar algum dinheiro, pouco, a emprestar algum, a mais. O lema, “Cada um por si e Deus por todos”. O seu individualismo pode encontrar expressão na vida política, costurando habilmente coesões de interesses pontuais, de curta duração, desarticulando projetos amplos, de longa duração, marcados pela impessoalidade da polis, da nação. A regra é: Confiar, nunca. Contrato, talvez. Dinheiro na conta, sim.

A personagem no papel de pai educador e político da coesão da maioria tem vocação de avestruz. É mestre nos ensinamentos da cegueira, frente a qualquer sentimento açucarado. A sua modelagem dos filhos envolve, se possível, escolas militares ou colégios com foco na linguagem matemática. O fantasma endiabrado, personagem imaginária, valoriza as habilidades voltadas para a educação tecnológica, matemática financeira, letramentos indispensáveis à guerra cotidiana, contra as dívidas, os bancos e os juros. Inimigos certo de todas as horas.

Em matéria de ciências biológicas a ênfase é a medicina privada e tecnologia de ponta. Medicina preventiva e doenças infecto contagiosas, nem pensar. Genética, talvez. A filosofia, a história e a literatura são, para a personagem imaginária, tema de importância menor, embora, em público, convém afirmar o inverso. Tais disciplinas podem ser alternativas para as meninas, uma espécie de seguro-desemprego para casamento ruim. O lema é: “quem sabe faz, quem não sabe ensina”. Filosofia política, ética e letras apenas para os afeiçoados ao desemprego, com vocação missionária. Letras, conhecimento supostamente inútil, adequado para o filho expressão das esperanças perdidas.

O Estado, ambicionado pela personagem imaginário, incluído na faixa de cinco a dez salários-mínimos e de dez ou mais, é o Estado mínimo. De preferência autoritário igualmente, cego e surdo às diversas vozes e instituições da sociedade civil. Sua linguagem reforça a vontade de desmantelamento das leis e das instituições, consideradas empecilhos para a liberdade individual. A justificativa, uma frase de significado, duvidoso: “Deus acima de todos e o Brasil acima de tudo”.

A língua e as linguagens aproximaram o Brasil dos Estados Unidos quando o tema é a extrema direita. Fato bastante peculiar na história entre países com desenvolvimento econômico distintos. Nenhum partido ou sindicato conseguiu agregar tantas pessoas escolarizadas e com cinco a dez salários-mínimos e dez salários-mínimos ou mais, em torno do ódio, das armas e contra a ciência. O mundo digital conseguiu esta façanha. Agregou e fidelizou compactamente, 25% a 30% da população. Estamos diante de um novo fenômeno histórico, bem representado pela invasão ao Congresso americano, com o apoio de ricos republicanos misturados com outros estratos sociais menos favorecidos. Não faltaram personagens fantasiados com chifres e chapéu de pele, imitando caçadores cheyenes de búfalos.

As antigas interpretações sobre o Brasil sugerem novas hipóteses. O Brasil do século XXI mudou muito. País tradicionalmente voltado para o centro e afeito à coluna do meio. Surgiu um novo Brasil, com personagens talhadas a machado, defensoras dos costumes patriarco-viris, marcadas por uma linguagem competitivo-grosseira (novidade), manipuladoras do poder político no mundo digital.

Nas redes sociais o novo ethos político ganhou visibilidade, identidade e força ao produzir uma nova linguagem. Destronou, por meio da barbárie, os tradicionais donos da escrita literária, da ciência e da razão. Bombardeou as verdades históricas pacificadas, os métodos científicos e desmobilizou a responsabilidade e o respeito à condição humana. Enterrou as palavras escritas, com arte, por Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, Jorge Amado (entre tantos outros). Eliminou personagens repletos de humanidade como Pedro Bala, Gabriela e a cachorra Baleia. Debochou da Medalha da Biblioteca Nacional – Ordem do Mérito do Livro. Prêmio recebido por Carlos Drummond de Andrade, intelectual, poeta e escritor homem de respeito, merecedor de admiração intelectual em tempos de um outro Brasil.

A encenação faz parte do teatro tecnológico do absurdo, com a participação ativa de personagens do tipo caçadores de búfalos, para o exercício da política cenográfica da barbárie, dos assassinatos em massa, e, por encomenda.

A comunicação digital, as novas tecnologias, libertaram demônios, simplificando a linguagem, adequando-a aos novos bárbaros. A linguagem, sem que ninguém perceba, detém muito poder. A linguagem faz política, hierarquiza o mundo, confina e liberta. Ela pode ser bendita ou maldita. A linguagem é a trama da política. É a alma polis. Ela determina a maneira de interpretar e mudar o mundo.

A personagem imaginária, do grupo “não tem almoço de graça”, crédulos do salvacionismo do mercado, do individualismo e do Estado mínimo conseguiram se juntar politicamente, embora com origem em diversos estratos sociais. A invasão do capitólio, animada por Trump e seus apoiadores, é metáfora e cenografia deste grupo.

As novas tecnologias criaram uma voz capaz de anular outras vozes, da ciência, da lógica e da razão. Nem mesmo a morte física por Covid teve capacidade para alterar a construção compacta, rígida, do processo unificador desta voz.

As novas tecnologias impuseram à língua uma nova semântica já estudada por filólogos (Victor Klemperer). Em que ela consiste? Trata-se de inverter significados de palavras vinculando assassinos e assassinatos a gestos heroicos, vinculando-os a palavras, superlativos que remetem a força, a grandeza e ao respeito incondicional às hierarquias. São vários os mecanismos de linguagem estudados para se inverter os significados, consolidar hierarquias e calar as vozes dissonantes. Por que atirar na multidão indefesa? A guerra é símbolo de força ou de incapacidade de negociação?

Para que exista sujeição, autorização para o tirano exercer a barbárie, é necessário silenciar, encolher a língua e a linguagem. Parece-me significativo a educação norte americana e a brasileira, tão distintas e tão próximas, terem produzido o mesmo efeito na conformação de um pensamento único. Ambas valorizam habilidades voltadas para linguagem matemática, financeira, para a retórica argumentativa (adequada a disputa) em detrimento de outras formas narrativas. Ambas silenciam a multiplicidade de vozes, dissonantes e consoantes, o prazer da leitura, a narrativa de complementariedade, necessária para o funcionamento da polis. Silenciam Aristóteles, Platão, a filosofia política e a ética na educação.

José Luiz Fiorin lembra, em artigo, como o fascismo proibiu o uso do tratamento “lei”, indicativo em italiano de distanciamento, determinando o uso de pronomes sugestivos de proximidade para criar vínculos. Uma armadilha da linguagem entre tantas outras para criar coesão entre os endemoniados. Leni Riefenstahl realizou nos seus enquadramentos cinematográficos e nas formações militares a semântica cenográfica nazista, primeiro capítulo dos assassinatos indiscriminados de massa. Este é o início de uma longa história para mostrar como age a semântica criando, por meio da linguagem escrita e visual, espaços de poder, desejos perversos e cenografia da barbárie.

A vida na polis depende da philia, amizade à moda dos gregos, depende da confiança (e, não, da desconfiança) entre as gentes, depende da coragem (e, não, do medo) em boa proporção. Depende da circulação segura na praça, na rua, no país em que se vive. Depende da ética, em outras palavras, da humanização, do vinho e da boa conversa entre amigos.

Um brinde para philia (amizade), amigos.

[1] Imagem: geralt / Pixabay.

Como citar este texto: Jornal da USP. Retrato estatístico do Brasil.  Texto de Janice Theodoro da Silva. Saense. https://saense.com.br/2022/07/retrato-estatistico-do-brasil/. Publicado em 19 de julho (2022).

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