Jornal da USP
03/04/2023
Por Leonardo Capeleto de Andrade, pós-doutorando no Instituto de Geociências da USP, Luciana Yokoyama Xavier, pós-doutoranda no Instituto Oceanográfico da USP, Ana Paula Pereira Carvalho, pós-doutoranda na Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da USP, e outros autores*
Antes de deixar os céus, uma gota d’água percorre a atmosfera em nuvens originadas de rios, lagos ou do oceano. Ao encontrar o chão, a água busca o caminho mais fácil até seu próximo destino, podendo evaporar, infiltrar ou escoar. A água – doce ou salgada, líquida, sólida ou gasosa – conecta o planeta. Em nossas casas, usamos água desde que acordamos até a hora de dormir, em média 150 litros por dia. Além, é claro, do consumo da “água virtual”, utilizada na produção dos bens de consumo – que, quando não incorporada aos produtos, torna-se um resíduo que precisa de tratamento e disposição adequados.
As águas residuárias, tratadas ou não, chegam cedo ou tarde aos rios e ao oceano. E se não estiverem propriamente tratadas, podem comprometer a saúde dos corpos hídricos, com sérias consequências para a biodiversidade e a saúde e segurança alimentar das pessoas que as utilizam, direta ou indiretamente. Mas, há soluções.
Para além do tratamento, o reúso é uma possibilidade. As águas residuárias de fonte agroindustrial podem ser reaproveitadas, após tratamento, no processo de fertirrigação, dado seu alto teor de macros e micronutrientes. A sua aplicação colabora com a produtividade, minimiza a utilização de fertilizantes sintéticos e reduz a demanda por água de melhor qualidade para esse fim. Esse reúso requer, todavia, um acompanhamento, não só da qualidade dessas águas, como também o mapeamento de áreas aptas que podem ser irrigadas – considerando, por exemplo, o tipo de solo e sua ocupação, a inclinação do terreno, profundidades do aquífero e a proximidade dos rios, para garantir a segurança desse tipo de aplicação.
Outra abordagem possível é a valorização dessas águas. Quando pensamos em águas residuárias industriais e agroindustriais, uma mudança no olhar pode transformar o que hoje é um resíduo em um subproduto. Atualmente, águas residuárias ricas em matéria orgânica já são utilizadas na produção de energia limpa na forma de biogás. Além disso, outros compostos como ácidos orgânicos e álcoois (de interesse para indústrias farmacêutica, alimentícia, entre outras) e até mesmo bioplásticos podem ser produzidos a partir do processamento dessas águas. Promove-se assim uma mudança de paradigma, onde o tratamento de águas residuárias deixa de ser somente uma obrigação para atendimento às legislações ambientais e passa a ser uma oportunidade de negócio, boa não só para a indústria como para o meio ambiente.
Soluções sustentáveis como essas reduzem a poluição das fontes de abastecimento, que afetam a qualidade de vida das populações e exigem tratamentos de água mais complexos. E este monitoramento da qualidade começa no local onde a água é captada, sendo avaliada a qualidade da água bruta, importante para definir como a água será tratada. Esse processo é necessário para que a água não tenha cor, sabor, cheiro e substâncias tóxicas. Para aumentar a eficiência do tratamento de água e diminuir os custos gerados (e o valor da conta de água paga pelos consumidores), é necessário conhecer a qualidade da água bruta de forma instantânea, possibilitando ações imediatas. Como, por exemplo, desenvolvendo um dispositivo que analise parâmetros diretamente na captação de água.
E uma das fontes de abastecimento são as águas subterrâneas, que são responsáveis pelo abastecimento de milhões de pessoas. A gestão e manutenção da qualidade e níveis dos aquíferos são uma questão de segurança hídrica para diversas cidades brasileiras. Apesar disso, a recarga dos aquíferos ainda não é uma realidade no Brasil. As águas das chuvas (que alagam muitas ruas) e outras fontes adequadamente tratadas poderiam ser utilizadas na irrigação e infiltração de áreas verdes ou mesmo diretamente injetadas nos aquíferos. Soluções integradas são importantes mecanismos de aumento da resiliência de cidades frente ao aumento das demandas e às mudanças climáticas globais.
As águas estão conectadas e tudo o que não conseguimos tratar em terra acaba sendo carregado pelas águas para o oceano (o maior corpo de água de nosso planeta), onde resíduos se acumulam e interagem negativamente. E é fato que sabemos pouco sobre o Oceano, mas o pouco que sabemos mostra que os impactos das atividades humanas estão presentes desde a superfície às maiores profundidades. Enfrentar esses impactos demanda uma gestão integrada dos recursos hídricos no Brasil. Para subsidiar esses processos que considerem as conexões terra-mar, precisamos inovar para ter uma ciência mais democrática, inclusiva, propositiva e integrada.
Pesquisas interdisciplinares, como as que são realizadas no programa USPsusten, contribuem para a segurança hídrica e bem-estar para as atuais e futuras gerações. Estas soluções propostas vão diretamente ao encontro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 6 e 14, da Agenda 2030 da ONU, e, assim como a água, conectam os demais objetivos.
* Mirian Yasmine Krauspenhar Niz, pós-doutoranda na Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da USP, e Alexander Ossanes de Souza, pós-doutorando no Centro de Energia Nuclear na Agricultura da USP. Todos os autores fazem parte do programa USPsusten. [1]
[1] Publicação original: https://jornal.usp.br/artigos/aguas-ciclicas-conectando-solucoes/.
Como citar este texto: Jornal da USP. Águas cíclicas: conectando soluções. Texto de Leonardo Capeleto de Andrade e outros autores. Saense. https://saense.com.br/2023/04/aguas-ciclicas-conectando-solucoes/. Publicado em 03 de abril (2023).