UFMG
08/11/2019
Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, e Ó, de Nuno Ramos, são obras difíceis de enquadrar nos gêneros tradicionais. Elas lidam de formas diferentes com o papel da arte – engajada, no caso do romance de Ruffato, e metafórica, na coletânea de Nuno. A chave comum, para Gleidston Alis, que acaba de defender tese de doutorado na Faculdade de Letras, é a ideia de dispersão, que é central na cultura contemporânea e também, por caminhos distintos, nos volumes analisados.
“Abordo duas obras de alta qualidade, marcadas pela falta de linearidade e pela pluralidade de discursos, por vezes, antagônicos”, diz Gleidston, que optou por dois operadores conceituais genéricos: a técnica do mosaico (Ruffato) e a lógica do hiperlink (Nuno).
Os 67 capítulos de Eles eram muitos cavalos não se comunicam de modo muito evidente. Rufatto enfileira fragmentos de histórias, cada qual com seu herói, para dar protagonismo a proletários e classes marginalizadas. Num dia inteiro em São Paulo, da madrugada até o fim da noite, os acontecimentos se sucedem em montagem intencional. “Há um fio que costura tudo e que justifica a denominação de romance. É um romance de representação de uma classe ou de uma cidade”, afirma o pesquisador.
De acordo com Gleidston Alis, o mineiro de Cataguases Luiz Ruffato, 58 anos, produz um mosaico de cacos, de “personagens-rejeitos” que circulam no espaço urbano. Eles partilham uma cidade e uma condição social, mas não interagem, apenas se olham. “Cada fragmento nos convida a imaginar coisas e pessoas: quem são, de onde vieram e para onde vão. A referência histórica é a própria contemporaneidade. O romance-mosaico de Ruffato tem data: ele se passa em 9 de maio de 2000, dia de um jogo do Corinthians, com uma dada taxa de desemprego”, conta o autor da tese, composta de ensaios críticos mais ou menos independentes e diversos entre si.
Gleidston lembra que há ironia na ideia de um romance proletário, na medida em que o gênero nasceu com o mundo moderno, quando ascendeu a burguesia, e o indivíduo ganhou espaço. “Esse romance também representa ruptura, e agora quem exige protagonismo são os excluídos históricos.”
Percursos imprevisíveis
O artista plástico, músico e escritor paulistano Nuno Ramos, 59, juntou em Ó textos curtos que não têm sequer um pedaço de história, são especulações filosóficas que não se concluem. Segundo Gleidston Alis, uma palavra pode provocar mudança radical de assunto. “Essa dicção remete à dinâmica do hiperlink digital. Nuno emenda os temas como se pula de um site para outro na internet. É um tipo de produção de sentido que exige muito do leitor, que segue percursos imprevisíveis, e o que se tira, no final das contas, é residual e depende do repertório de quem lê”, explica Gleidston.
Com base nos contos ou ensaios ficcionais de Nuno Ramos, Gleidston Alis propõe um debate sobre a relação humana com a alteridade animal e a questão da utilidade da arte e da escrita. Segundo ele, esse é um ponto fulcral: “a arte não serve para nada, serve para expandir o pensamento, experimentar o impensável. É transgressão, insubmissão.” Da obra de Ruffato, o pesquisador selecionou fragmentos que tratam de problemas vinculados à imigração e às relações familiares. Nos quatro capítulos da tese, nos quais Gleidston Alis aborda aspectos contextuais e formais, ele lança mão de referências da sociologia clássica, do discurso identitário contemporâneo e de questões linguísticas, tipográficas e visuais.
Nos comentários finais, Gleidston Alis declara sua “felicidade” com a escolha de seus objetos de estudo, por tudo que “os textos têm de incomum, de irregular, de inconformidade” e pela chance de digredir “a respeito do que essas escritas têm a dizer por meio de dicotomias, dilemas, diálogos”. Ele escreve, ainda, que “a experiência estética não é reconhecedora, reafirmadora, mas questionamento do antes aceito”.
Tese: Mosaicos, hiperlinks e outras dispersões: considerações sobre Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, e Ó, de Nuno Ramos
Autor: Gleidston Alis
Orientadora: Maria Zilda Ferreira Cury
Defesa: 21 de outubro de 2019, no Programa de Pós-graduação em Estudos Literários
(Itamar Rigueira Jr.)
Como citar esta notícia científica: UFMG. Arautos da dispersão. Texto de Itamar Rigueira Jr. Saense. https://saense.com.br/2019/11/arautos-da-dispersao/. Publicado em 08 de novembro (2019).