Jornal da USP
28/04/2020

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Por Renan Gonçalves Leonel da Silva, pesquisador colaborador no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP

Nos últimos dias temos recebido uma enxurrada de perguntas de amigos e familiares sobre quando teremos um medicamento ou vacina para mitigar a crise da covid-19. Em grande medida, essa comoção tem sido impulsionada pelo amplo espaço dado pela mídia em acompanhar a evolução em tempo real do aumento das infecções pelo Sars-Cov-2, o chamado coronavírus. Essas perguntas envolvem uma preocupação que é, no fundo, de ordem tecnológica: afinal, reunimos no Brasil as condições para fazer esse novo medicamento?

Certamente, a resposta envolve elementos de cunho histórico e político: decisões tomadas no passado afetaram a nossa capacidade de desenvolver novas tecnologias em saúde e fazer estas chegarem aos usuários. Também, esse desafio está relacionado a uma cisão bem conhecida pela sociedade brasileira, situada na delicada relação entre quem produz conhecimento, quem o financia e quem faz essas ideias chegarem ao mercado, ou seja, o persistente distanciamento entre o Estado, a comunidade científica e a indústria brasileira em áreas intensivas em conhecimento. A crise que atravessamos deixa ainda mais explícitos os resultados dessa fragmentação, com atores que parecem estar, agora, olhando para direções convergentes em busca de soluções conjuntas.

Diante de situações como esta que vivemos, é comum que a sociedade se mobilize na busca de respostas rápidas para problemas emergenciais. É quando se adotam iniciativas de tipo tentativa-e-erro: diante de desafios clínicos muito graves e letais, assume-se o risco de tentar alguma coisa, ao invés de assistir passivamente ao desfecho da situação.

No plano internacional, exemplo disso é o aumento explosivo da prática de drug repositioning, quando se busca aplicar um remédio que serve para tratar uma doença para mitigar efeitos em outra doença (como no caso da controvérsia em torno do uso da hidroxicloroquina, por exemplo). Na crise do coronavírus, dada a urgência, essa prática pode produzir resultados positivos e salvar milhares de vidas. Nesse sentido, os governos estão corretos em buscar medidas emergenciais para conter o número de mortos e novas infecções. Porém, logo aparecerá no mercado um medicamento mais específico, seguro, eficaz e de qualidade certificada por sociedades médicas e organizações internacionais. Ele tornará obsoletas as soluções anteriores.

Considerando o avanço das tecnologias sobre o assunto, um medicamento mais definitivo para tratar os efeitos do coronavírus no corpo humano será, provavelmente, uma imunoterapia baseada no uso de anticorpos monoclonais terapêuticos. Imunoterapias são tratamentos que fazem uso de medicamentos sintetizados em base biotecnológica, produzidos a partir de materiais provenientes do próprio ser humano (como células, plasma sanguíneo, tecidos etc.), que são projetados para atacar agentes debilitadores do sistema imune humano. Anticorpos monoclonais, por sua vez, são proteínas de elevada especificidade produzidas em laboratórios e programadas para produzir receptores potentes capazes de atacar um agente específico (vírus, bactérias, células cancerígenas), interrompendo a replicação do invasor no nível do DNA. Todos os clones da mesma célula-mãe agem para neutralizar o avanço de infecções que o corpo não está pronto para interromper sozinho, de maneira que os clones levam a informação para ativar o sistema de defesa do paciente.

É para a produção desse tipo de medicamento que as grandes empresas farmacêuticas têm direcionado seus investimentos nos últimos 30 anos, e essa complexa e custosa plataforma tecnológica está sendo amplamente utilizada neste exato momento em vários países. Desenvolver remédios desse tipo é um processo demorado e, também, muito caro. Para se ter ideia, uma estimativa feita em 2014 pelo Centro para o Estudo do Desenvolvimento de Medicamentos da Universidade Tufts (Tufts Center for the Study of Drug Development) mostrou que cada molécula com potencial terapêutico demora em média 12 anos entre a pesquisa experimental e a sua comercialização, e custa em média US$ 2,9 bilhões (aproximadamente R$ 15 bilhões)[1]. Também por isso, o preço desses medicamentos no varejo é muito alto, tornando fiscalmente inviável sua incorporação em sistemas de saúde públicos e universais como o brasileiro.

A turbulenta história recente do Brasil mostra que os raros esforços implementados para capacitar o setor produtivo em saúde foram em outra direção, em que se privilegiou uma forte agenda de transferência de tecnologia de empresas estrangeiras, além de um papel centralizador dado ao Estado brasileiro como comprador desses produtos. Desde os anos 90, compras públicas garantem mercado consumidor para insumos e medicamentos de interesse do Sistema Único de Saúde (SUS), mas pouco foi feito no sentido de se estruturar um parque permanente de pesquisa e desenvolvimento em novos medicamentos, cofinanciado pela indústria, governo e universidades.

Relativo à produção de medicamentos, em duas ocasiões o País mostrou maior preocupação com o tema, quando da conhecida onda dos genéricos no final dos anos 90 e, mais recentemente, da difusão das versões similares dos biorremédios, os chamados biossimilares. Estes são versões quase idênticas daqueles medicamentos inovadores, com eficácia e segurança comprovadas, cuja transferência ocorre para aqueles com patente expirada.

Em meados dos anos 2000, uma série de iniciativas criadas pelo Ministério da Saúde, em parceria com o BNDES e associações da indústria farmacêutica, buscou qualificar o parque industrial brasileiro para produzir biossimilares demandados por pacientes que tratam cânceres ou doenças crônicas de origem autoimune[2]. Importantes avanços foram alcançados pelos laboratórios oficiais farmacêuticos, como Instituto Butantan e Bio-Manguinhos, que usaram esses recursos para reformar plantas industriais, equipar laboratórios e prover maior estabilidade de insumos para a produção em larga escala.

Vale mencionar que a opção feita por copiar tecnologias para o mercado nacional encontrou sustentáculo na própria política de saúde desse governo e dos anteriores. Dados do Siscomex mostram que isso não gerou o impacto esperado na balança comercial farmacêutica no País, que segue deficitária e dependente da importação de insumos e medicamentos de alto custo. Essa desvantagem atingiu pico em 2018 e 2019, registrando um déficit de quase US$ 7 bilhões (cerca de R$ 36 bilhões). Essa marca deve ser superada este ano, dada a desvalorização do real frente ao dólar e do aumento das compras governamentais de emergência de produtos importados para equipar centros de saúde contra o coronavírus.

Embora tais iniciativas tenham sido importantes para o processo de aprendizado tecnológico em saúde, vemos que o dilema persiste. Não foi dada a prioridade necessária para a implementação de parcerias de desenvolvimento de novas moléculas inovadoras, ou mesmo ampliação de um parque de serviços de base biotecnológica como estratégia de dar suporte à indústria nacional, como feito na China e Coreia do Sul, por exemplo. O dilema é complexo. Por um lado, governos e empresas investem em atalhos para garantir mercado e ampliar o acesso da população à saúde. Por outro lado, isso reforça nossa posição de compradores de tecnologias, ou de copiadores de remédios obsoletos, mantendo a sociedade brasileira sempre à mercê da misericórdia de big pharmas.

Vale lembrar que, nos últimos cinco anos, empresas farmacêuticas nacionais tomaram risco e implementaram projetos biofarmacêuticos robustos no Estado de São Paulo, como o caso de joint-venturesstart ups de serviços e soluções biotecnológicas, entre outras iniciativas. Com o amparo adequado do Estado brasileiro, elas poderiam liderar um processo mais ambicioso pela pesquisa e desenvolvimento em saúde no País.

Porém, as sucessivas deficiências na capacidade gerencial do Estado brasileiro ao longo das últimas décadas e a crescente perda da competitividade da indústria nacional nos dão caminhos para entender a persistência desse dilema. O setor encontra dificuldades reais de financiar suas próprias trajetórias de capacitação tecnológica, que dirá se lançar em um longo, caro e arriscado caminho em busca de uma nova imunoterapia para a covid-19. Esse é um oceano de peixes grandes.

Também a ciência sofre alterações radicais de investimentos entre governos e gestões, algo que inviabiliza a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico. Prover estabilidade de recursos e maior valorização de pesquisadores seria apenas o começo de uma alavancagem desse processo, que sempre é uma tarefa de médio a longo prazo.

Ensaios clínicos com uso de anticorpos monoclonais já estão a pleno vapor em países como os EUA e China, como mostra o artigo de Marcelo Leite publicado na Folha de S. Paulo em 6 de abril de 2020[3]. No Brasil, precisamos escolher se queremos manter nossa posição de compradores de tecnologias em saúde e seguir pagando um preço alto pela falta de visão de longo prazo. Por que não aproveitarmos o momento para mudarmos de vez essa lógica?

[1] Apresentação do estudo pode ser acessada no link https://www.youtube.com/watch?time_continue=2&v=EcGJm5FrMPA&feature=emb_title

[2] Conforme apresentado no livro Saúde, desenvolvimento e inovação, organizado por Lais Costa, Lígia Bahia e Carlos Gadelha e publicado em 2015 pela editora Cepesc, RJ.

[3] A matéria está disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marceloleite/2020/04/tempestade-celular-pode-explicar-mortes-por-coronavirus.shtml.

[4] Imagem de Ri Butov por Pixabay.

Como citar este artigo: Jornal da USP. Desenvolvimento tecnológico em saúde na pandemia da covid-19.  Texto de Renan Gonçalves Leonel da Silva. Saense. https://saense.com.br/2020/04/desenvolvimento-tecnologico-em-saude-na-pandemia-da-covid-19/. Publicado em 28 de abril (2020).

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