Jornal da USP
17/06/2020

[1]

Por Charles Mady, professor associado da Faculdade de Medicina da USP

Estes últimos tempos têm se caracterizado pela carência de bons exemplos na vida pública. A população é diariamente bombardeada com notícias, comentários, atitudes e ações que beiram a amoralidade e a falta de espírito republicano, tolerados até agora pela grande resiliência de nossa sociedade. Mas até quando se suportará esse quadro, que nem o mais iluminado dos profetas poderia imaginar?

O Brasil é um país extremamente rico em recursos naturais, e nossa democracia resistente às frequentes agressões sofridas desde o fim do período militar. Governo após governo, todos tiveram suas cotas de problemas e falcatruas, como se essa maneira de governar fosse institucional. Se todos os malfeitos fossem reunidos, se colocados em livros, uma enciclopédia ou talvez uma biblioteca poderia ser escrita, com um título sugestivo de como não deveria ser a coisa pública. Maquiavel seria hoje um amador, e ficaria enciumado e envergonhado pela sua ingenuidade, pois concluiria que seus pensamentos eram inocentes, perante nossa realidade atual. Deve estar se revirando em sua tumba, inconformado com sua “falta de visão”.

Quando julgamos que atingimos o fundo do poço, somos brindados com novas e preciosas pérolas, frutos de profícua imaginação. Vivemos uma pandemia viral muito grave, de consequências catastróficas, mas sabemos que um dia terminará, com todas as suas terríveis destruições. Porém, o mau uso da política é endêmico neste país, não se enxergando luz no final de qualquer túnel. Essa cultura tem raízes profundas, difíceis de serem extirpadas.

Isso caracteriza um tipo de fundamentalismo ligado à corrupção e ignorância, aliadas à soberba da autoridade acima de qualquer crítica. Esse pessoal é fanática e ideologicamente corrupto. Desonestidade, aliada à ignorância, geram consequências que gerações sofrerão para corrigi-las. Muitas serão necessárias para erradicar o mal aqui criado. Erros de tamanha magnitude são de difícil tratamento. Felizmente, ou infelizmente, não sei, acredito que o único caminho é o democrático, que necessita uma reforma cultural profunda, que depende de educação a longo prazo.

Quando se acreditava que o átomo era indivisível, Einstein dizia que era mais fácil cindi-lo que quebrar um preconceito fanático, profundamente enraizado. Entra governo, e sai governo, independentemente de suas pretensas ideologias, a situação se mantém, testando a paciência de nosso povo. Não são ideologias sociais, políticas e religiosas, que só geram ódios às diferenças, polarizando a sociedade com seus fundamentalismos, que salvam uma sociedade. Não atingiremos o desenvolvimento com destruição, incompreensão e falta de espírito público, que deveria estar acima de diferenças e birras pessoais.

As diversas Escrituras, pretensamente ditadas por Deus, ou deuses, que devem estar bravos conosco, e compiladas com as mais diversas interpretações, não devem ser fontes de orientações políticas. Assim como as constituições dos variados países, têm, cada qual, múltiplas formas de ser entendidas. Sem diálogos, tolerância e compreensão não chegaremos a lugar algum, e não construiremos uma democracia para todos e, sim, para alguns.

Até quando a população vai suportar esses jogos políticos, realizados por mentes movidas por fanatismos, soberba e egoísmo, que lá chegaram por falta de uma estrutura política adequada?

Temos quadros humanos e profissionais de nível invejável, reconhecidos em todo o mundo. A riqueza de mentes com formações de elevado grau é impressionante. Infelizmente, muitos estão se evadindo, à procura de outros horizontes, ou buscando segurança, ou fugindo do sistema estabelecido, que os impede de assumir postos mais elevados. Os mais realistas fogem da área política, tendo noção do custo pessoal a se pagar. Mas a esperança é a última que morre. Temos ilhas de excelência que, em situações de muita gravidade, se mostram à altura dos desafios que se apresentam.

É gratificante observar a atuação de profissionais de saúde das redes pública e privada desenvolvendo um trabalho que nos deixa orgulhosos. Assistimos, diariamente, a dedicação de nossos recursos humanos, mesmo estando sob risco e com poucas condições materiais para levar adiante um nobre trabalho. Deveria ser exemplo para outros setores de nossa sociedade, principalmente os da área política. Observamos centros geradores de ciência, tão vilipendiada, colocarem-se no topo do conhecimento da atual pandemia. São esses exemplos que nos levam a crer em um futuro melhor, em uma sociedade mais justa, na capacidade do ser humano de aprender e evoluir.

Desânimo e desesperança não nos levam a lugar algum. Difícil dizer se esses sentimentos negativos vão aumentar entre nós. Que a área de saúde seja o nosso norte, demonstrando a todos que este é um país que será exemplo para o mundo, apesar do esforço em contrário realizado por pessoas que não foram educadas para entender conceitos republicanos e democráticos. A saúde em nosso país é exemplo a ser seguido.

[1] Imagem de Gerald Oswald por Pixabay.

Como citar este artigo: Jornal da USP. A saúde como exemplo a ser seguido.  Texto de Charles Mady. Saense. https://saense.com.br/2020/06/a-saude-como-exemplo-a-ser-seguido/. Publicado em 17 de junho (2020).

Notícias do Jornal da USP     Home