Jornal da USP
25/08/2021

A pesquisa analisa quais países estão estrategicamente mais bem posicionados na malha de cabos submarinos que estrutura a internet (o chamado backbone), observando como se distribui o fluxo potencial de dados que passa por essas infraestruturas [1]

Há algumas décadas, o ambiente digital também se tornou território de conflitos internacionais, onde uma das maneiras de exercer poder neste chamado “ciberespaço” está na capacidade das nações de vigiar, deter informações e prever comportamentos. Entretanto, diferente de quantificar contingentes de soldados e toneladas de armamento químico, como se pode mensurar o poder cibernético de um país?

O estudo desenvolvido pelo pesquisador Victor Veloso, mestrando do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, vê a resposta na capacidade de vigilância exercida pela concentração de infraestruturas essenciais para o fluxo das informações. A pesquisa analisa quais países estão estrategicamente mais bem posicionados na malha de cabos submarinos que estrutura a internet (o chamado backbone), observando como se distribuí o fluxo potencial de dados que passa por essas infraestruturas. Os resultados mostram que, de 2011 a 2017, os Estados Unidos perderam poder potencial de vigilância em comparação à China – embora ambos tenham reduzido suas forças em relação ao globo. A análise aponta que, apesar do estreitamento entre esses países, a ciberguerra está menos bipolarizada, com novos protagonistas no contexto global.

A ideia da pesquisa surgiu de um dos principais conflitos diplomáticos entre EUA e China da última década: a disputa pelo 5G. Personificado na postura combativa de Donald Trump (2017-2021), o então presidente estadunidense vetou a entrada no país da empresa chinesa Huawei, única à época que detinha a mais completa solução de software e infraestrutura do 5G. O argumento era que se tratava de um aparelho de espionagem, uma ameaça à segurança nacional. Na época, Trump pressionou aliados a declinar da empresa de Pequim, afirmando que isto aumentaria o poder de vigilância e controle chinês. “Entretanto, essa mesma reação não foi observada no contexto de cabos submarinos, outra importante infraestrutura de comunicação na qual a China vem crescendo. Por que esta diferença de reação?”, questiona Veloso.

Quando se analisam os fluxos internacionais, percebe-se que há pontos de maior importância na rede, que concentram uma passagem maior de dados, o que coloca os países que controlam essas infraestruturas em vantagem por aumentar seu potencial de vigilância. “Quanto maior a concentração destas infraestruturas por um agente, maior a sua capacidade de interceptar essas informações”, explica Veloso.

Backbone da internet”: a rede das redes

Possuir as melhores informações sempre foi um ponto central para estratégia de batalha, pois trata-se de possuir referências qualificadas para ação. Mas, segundo Veloso, com as tecnologias atuais, as possibilidades de vigilância são sem precedentes; a velocidade com a qual se pode colher e processar informação mudou as disputas de poder. Hoje, uma das principais infraestruturas que possibilitam essa troca de informações globais é o “backbone da internet”. Como o significado do inglês sugere, essa “espinha dorsal” – assim como a do corpo humano – interliga as redes locais de cada país por cabos que atravessam os oceanos, o que torna possível a comunicação entre diferentes partes do planeta.

Essa malha de fluxo global de dados opera principalmente através dos servidores upstream, considerados pontos de saída e chegada das informações que trafegam carregadas por cabos submarinos. Entretanto, nem todos os países estão conectados diretamente entre si, tornando obrigatórias passagens em determinados locais antes do destino final. Assim, a transmissão de uma mensagem é restrita a alguns caminhos por onde a informação deve percorrer. A dinâmica é semelhante às linhas aéreas de viagens internacionais, mas, no lugar dos aviões que levam dezenas de pessoas por algumas horas, temos cabos de fibra óptica transoceânicos que transmitem dezenas de terabytes por segundo.

O mapa abaixo representa esta malha e ilustra a lógica das escalas. Nele, cada ponto representa um servidor upstream e cada linha representa um cabo submarino. Se imaginássemos que para uma informação que saia, por exemplo, da Argentina para os EUA, esta mensagem necessariamente faria “escala” no Brasil. De acordo com Veloso, quando se analisam os fluxos internacionais, percebe-se que há pontos de maior importância na rede, que concentram uma passagem maior de dados, o que coloca os países que controlam essas infraestruturas em vantagem por aumentar seu potencial de vigilância. “Quanto maior a concentração destas infraestruturas por um agente, maior a sua capacidade de interceptar essas informações”, explica Veloso.

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O Caso Snowden, de 2013, abriu os olhos do mundo em relação às questões de segurança e espionagem. Na época, Edward Snowden, ex-consultor técnico da Agência Central de Inteligência (CIA), revelou um amplo esquema de monitoramento dos EUA, que incluía as ligações telefônicas da então presidente do Brasil, Dilma Rousseff. 

Nesse caso, o serviço americano foi capaz de espionar, explorando seu melhor posicionamento estratégico em relação a outros países, pela coleta upstream. Por esse método, os EUA grampeavam as informações que passavam pelos cabos que detinham, independentemente se esta informação estava ou não direcionada a um destinatário no país ou apenas de passagem para outro local.

Entretanto, visto que esse novo espaço proporcionou uma inédita relação geopolítica, as formas de disputa não seguem necessariamente o que se esperava até então pelo consenso nos estudos das relações internacionais, que preveem, na teoria realista de Kenneth Waltz , um dos mais importantes teóricos na área, que os Estados busquem reagir às perdas relativas de poder. “Pela teoria realista, a escolha racional dos EUA frente a esse cenário seria de tentativa da manutenção de sua vantagem no posicionamento estratégico da rede, seja pelo conflito com o rival ou pela busca de aumento deste poder por conta própria. Não foi o cenário que os resultados da pesquisa apontaram. O poder chinês aumentou em relação ao norte-americano, porém não houve nenhum conflito nas mesmas proporções que o 5G”, afirma. Por isso, parte da pesquisa busca entender como se dão as relações político-diplomáticas entre os países nestes diferentes contextos da ciberguerra.

Como mensurar o poder de vigilância atual das nações e analisar sua mudança?

Segundo Veloso, outra contribuição da pesquisa é a utilização de um método para mensurar o poder de vigilância atual das nações, podendo assim objetivamente metrificar como este poder cibernético se alterou a fim de analisar se houve ou não alguma mudança  Para chegar a estes números da distribuição de poder na rede global de informações, o estudo contou com uma base de dados, que ilustra o fluxo potencial (aquele que tem capacidade de trafegar) de dados por cabos submarinos. A base foi aplicada a uma Social Network Analysis (SNA), que mensura diferentes importâncias de pontos em uma rede a partir de seus posicionamentos e ligações. No caso da base, foram observados países ligados por cabos submarinos e qual o fluxo potencial, ou seja, quanta informação cada um pode transmitir, de 2011 a 2017.

Quando analisados os pontos por critério de proximidade – ou seja, quais pontos estão mais próximos de outros pontos na rede e, portanto, têm influência de broadcaster (“transmissor”, do inglês) –, os EUA lideram o ranking em 2011 (0,8377), enquanto a China ocupa o quinto lugar (0,6991). Seis anos depois, EUA caem para a quarta posição (0,7900) e a China se posiciona como sétima (0,6688). A China ganha em relação aos Estados Unidos, mas ambos perdem importância como broadcasters para o globo. 

Já nos pontos de intermediação, que são os pontos essenciais para os caminhos mais curtos da informação, aqueles que fazem a ponte entre pontos, são os gatekeepers (“porteiros”, do inglês), os EUA se mantêm na liderança como maior transmissor, embora tenham apresentado queda na pontuação: de 0,3473  para 0,2704. A China foi da sexta posição para a décima: de 0,0382 para 0,0221. Na última análise feita, que balanceia a influência de broadcaster e gatekeeper, os EUA passam de segundo lugar (0,9627) para quinto (0,7540) e a China de quarto (0,7903) para sétimo (0,6188). 

EUA perderam força cibernética para China, mas ambos perdem poder para o resto do globo

De maneira geral, no período analisado, os EUA perderam força cibernética em relação à China, apresentando redução da concentração de dados, ao passo que a China teve relativo aumento, o que indicou estreitamento das forças. “Quando se olha em números absolutos, a China tem cada vez mais empresas, cabos, e se destaca no ciberespaço como uma potência tecnológica. Mas, na seara dos cabos submarinos, a ideia de que a China vem para dominar tudo não se verifica. Nos rankings, ela cai em posição, mostrando que essa guerra é polarizada, mas existem outros atores emergindo”, afirma o pesquisador. 

Comparando ao resto do globo, ambos os países perderam poder, enquanto nações da Europa receberam destaque. O Brics também ganhou protagonismo nesta década, como pontos relevantes da malha global de cabos submarinos. Como afirma Veloso, “olhando para dados, o grupo econômico que mais se destacou foi o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Impulsionados pela China, eles evoluíram na sua importância na internet”. 

Em um contexto em que o espaço cibernético é cada vez mais importante em nosso cotidiano, é relevante entender como as dinâmicas da política e do poder moldam este novo meio de interação. Estudos sobre este tema, como o de Veloso, oferecem maneiras de como enquadrar essas questões e compreender em parte esse fenômeno novo e complexo. A pesquisa Mensurando Forças no Ciberespaço, de Victor Veloso, foi orientada pela pesquisadora Marislei Nishijima, doutora em Economia pela USP e professora associada do IRI da USP.

Mais informações: e-mail victor.cavadas@usp.br, com Victor Veloso. [3]

[1] Fotomontagem por Rebeca Alencar com imagens de Wikimedia Commons e Pixabay.

[2] Foto: Reprodução/Telegeography.

[3] Texto de Guilherme Gama.

Como citar este texto: Jornal da USP. China e EUA se destacam em infraestrutura de internet entre países, mas cenário está menos polarizado.  Texto de Guilherme Gama. Saense. https://saense.com.br/2021/08/china-e-eua-se-destacam-em-infraestrutura-de-internet-entre-paises-mas-cenario-esta-menos-polarizado/. Publicado em 25 de agosto (2021).

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