Jornal da USP
30/07/2025

Há mais de 15 anos, a comunidade científica discute a suposta existência de uma espécie de raia-manta no Oceano Atlântico não conhecida pela ciência. A taxonomia do gênero Mobula confunde especialistas, que têm questionado se estão diante de uma nova espécie ou de características não documentadas das já conhecidas. Na última quarta-feira (23), essa dúvida chegou ao fim: um artigo publicado na Environmental Biology of Fishes descreveu formalmente a espécie misteriosa como uma nova raia-manta gigante, presente do nordeste dos Estados Unidos ao Sudeste do Brasil. Ela recebeu o nome científico Mobula yarae, em homenagem à lenda brasileira Yara.
Morfologicamente, ela é caracterizada por uma pele revestida de dentículos dérmicos em forma de estrela, manchas em “V” na região dorsal acima das brânquias, manchas ventrais no abdômen e nadadeiras peitorais, um bulbo caudal com espinho vestigial na base da cauda, banda dentária apenas na mandíbula inferior com nove a 13 fileiras de dentes. Com até seis metros de largura de disco, os espécimes examinados foram encontrados em diferentes regiões do Brasil, como Ilha Comprida (SP), Natal (RN) e Fernando de Noronha (PE), e também no exterior: no México e na costa da Flórida, nos Estados Unidos.
Para identificá-la, além de analisarem sua morfologia e coloração, pesquisadores sequenciaram os genomas mitocondrial e nuclear da espécie.
“As três espécies de raia-manta são muito parecidas, e foi difícil fazer a distinção e o delineamento desta nova espécie [Mobula yarae] apenas com base em aspectos morfológicos. E todas as hipóteses ressaltavam a cor, mas não tinha como bater o martelo se era realmente uma nova ou um morfotipo diferente. E aí a gente decidiu entrar com a parte de genética”, detalha Nayara Bucair, primeira autora do artigo. Os dados do mapeamento reforçam que se trata de uma linhagem distinta monofilética, com ancestrais comuns aos seus congêneres mais próximos, Mobula birostris e Mobula alfredi.
Nayara é doutora pelo Instituto Oceanográfico (IO) da USP e liderou outros 14 pesquisadores nacionais e internacionais durante o trabalho. “Só o fato de a gente estar descrevendo essa espécie depois de 16 anos já é um grande avanço. Ter conseguido fazer isso com poucos recursos e em uma instituição brasileira é um outro destaque. Esse trabalho foi fruto de muitas colaborações, não teria conseguido realizar este feito sozinha.”
Agora, com nova a descrição, o gênero Mobula passa a contar com dez espécies: três raias-manta — Mobula yarae, a Mobula birostris e a Mobula alfredi — e outras sete móbulas menores. Todas pertencem à família Mobulidae, popularmente conhecida como mobulídeos.
Origens da descoberta
Foram necessários anos de mergulhos e observações para que uma conclusão sobre a nova raia-manta ganhasse forma. Nayara Bucair iniciou a carreira com foco em Oceanografia Física, mas mantinha, desde antes da graduação, uma relação próxima com o mergulho autônomo. Foi essa prática que a levou a morar por temporadas em Fernando de Noronha, onde trabalhou como instrutora e fotógrafa subaquática.
“Eu vi a minha primeira raia-manta no arquipélago e me chamou a atenção. Fiquei superentusiasmada como mergulhadora e como ambientalista. E essas avistagens passaram a acontecer com maior frequência. Como eu trabalhava mais na parte da oceanografia física, comecei a pensar um pouco nas questões das variações ambientais, o que estava acontecendo para estimular as ocorrências na região”, explica a oceanógrafa. No entanto, durante o processo, Nayara se viu confusa sobre qual espécie de raia-manta estaria observando: as avistagens eram, em sua maioria, de filhotes, com características incomuns.
A falta de informações e especialistas a respeito da espécie no Brasil fez com que ela buscasse ajuda de colegas da área. Assim, Nayara conheceu a hipótese de que teria uma espécie não identificada de raia-manta e que ninguém havia chegado a uma descrição formal dela. A partir dali, começou a juntar informações e dados dos avistamentos na costa brasileira. “As raias-manta têm pintas e manchas na região ventral. Com isso, é possível identificar cada um dos indivíduos, monitorar estes espécimes e também as populações”, afirma.
Desafios
Uma das principais dificuldades em pesquisar animais de grande porte é lidar com tamanho dos indivíduos. A maior espécie de raia-manta chega a medir até sete metros de largura, o que dificulta a coleta de material em campo, transporte de carcaças, o armazenamento de espécimes em coleções científicas e análise em laboratório. Animais com esse porte não são facilmente manuseados, o que limita o acesso a material biológico completo.
Ainda assim, os pesquisadores conseguiram realizar análises detalhadas. Examinaram características externas como a pele e os dentículos dérmicos, a dentição e uma peculiaridade anatômica: um espinho vestigial localizado na base da cauda, diferente das demais espécies do grupo. A alimentação também foi levada em conta. Como são animais filtradores, que se alimentam de plâncton, as raias-manta possuem estruturas específicas para esse processo (filamentos filtradores) que variam entre espécies. Essa diferença também foi usada como critério de comparação.
Conservação
A ameaça mais alarmante que as raia-mantas enfrentam é a pesca direcionada. Desde os anos 1980, a retirada de seus arcos branquiais tem se intensificado para abastecer o mercado asiático, onde sua carne é vendida por conta de supostas propriedades anti-inflamatórias e desintoxicantes. Segunda a oceanógrafa, o Brasil está entre os fornecedores ilegais dessa estrutura.
Outro problema é a pesca incidental, quando espécies não alvo da pesca são capturadas. “O desenvolvimento costeiro, a poluição por produtos químicos/orgânicos, detritos marinhos, plástico e microplástico, emaranhamento, atropelamento por embarcações e o impacto das alterações climáticas nos ecossistemas marinhos e costeiros representam outras ameaças iminentes para as móbulas”, complementa Nayara.
O aumento das capturas associado às características biológicas das móbulas, como a baixa taxa reprodutiva e o crescimento lento, resultou no declínio significativo das populações das espécies, principalmente nas últimas décadas. Todas estão atualmente listadas em categorias de espécies ameaçadas de extinção, de acordo com a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).
O artigo An integrative taxonomy investigation unravels a cryptic species of Mobula Rafinesque, 1810 (Mobulidae, Myliobatiformes), from the Atlantic Ocean pode ser acessado neste link.
Mais informações: nayarabucair@usp.br, com Nayara Bucair [1], [2]
[1] Texto de Amanda Nascimento
[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/raia-manta-gigante-cientistas-descrevem-nova-especie-do-atlantico/
Como citar este texto: Jornal da USP. Raia-manta gigante: cientistas descrevem nova espécie do Atlântico. Texto de Amanda Nascimento. Saense. https://saense.com.br/2025/07/raia-manta-gigante-cientistas-descrevem-nova-especie-do-atlantico/. Publicado em 30 de julho (2025).