Antônio Murilo Macedo
09/06/2017
Como seriam as leis da física, química e biologia se o mundo tivesse apenas duas dimensões espaciais? Esta pergunta, aparentemente inocente, pode ter respostas surpreendentes quando levamos em conta os princípios básicos da mecânica quântica. Na literatura este tema foi abordado como uma sátira à Inglaterra Vitoriana no romance “Flatland: A Romance of Many Dimensions” de Edwin A. Abbot, publicado em 1884, onde os personagens são figuras geométricas planas. Mais recentemente, uma animação homônima foi produzida em 2007 [2]. Uma análise do ponto de vista científico das leis da física, química e biologia em duas dimensões foi apresentada, por exemplo, no livro de A.K. Dewdney [3]. No entanto, a mais espetacular manifestação da física bidimensional apareceu pela primeira vez apenas no estudo de Myrheim e Leinaas [4], onde a conexão entre a topologia espacial e a estatística quântica das partículas elementares foi discutida em detalhe. Os autores mostraram a possibilidade da existência de partículas exóticas de estatística intermediária entre bósons (similares a fótons) e férmions (similares a elétrons). Mas, vamos primeiro explicar o que é estatística quântica e como ela pode ser importante em aplicações tecnológicas atuais.
Um dos conceitos mais marcantes da física quântica é a indistinguibilidade das partículas elementares. Vamos tentar explicá-lo através de uma alegoria muito simples. Suponha que você esteja em uma fila esperando um atendimento e um funcionário distribui fichas com senhas numéricas. Por exemplo, o número 1 para o primeiro da fila, o número 2 para segundo e assim por diante. As fichas são portanto rótulos que distinguem as pessoas pela sua posição na fila e podemos chamar esta configuração de um “estado”. Se duas pessoas trocarem de posição, ou de fichas, temos obviamente um novo estado. Mas, se as pessoas fossem indistinguíveis, como as partículas elementares quânticas, a troca das fichas não produz um novo “estado” e portanto uma caracterização completa do “estado” precisa levar em conta esta simetria de permutação. É aqui que entra a questão da dimensionalidade do espaço. Em três dimensões, existem apenas duas maneiras de caracterizar o estado contabilizando todas as possíveis permutações dos rótulos: uma que é totalmente simétrica (invariante a transposições de dois rótulos), que corresponde aos bósons, e outra que é totalmente antissimétrica (transposições de dois rótulos produzem um sinal), que corresponde aos férmions. Em duas dimensões espaciais existe uma família infinita contínua de possibilidades de caracterização do estado e as correspondentes partículas foram chamadas de anyons.
Apesar da possibilidade teórica de anyons existirem em duas dimensões ter sido estabelecida em 1977, foi apenas no final da década de 1980 que anyons ganharam destaque na literatura científica, quando foi demonstrado que eles são as excitações elementares de dispositivos que exibem o efeito Hall quântico fracionário. Além disso, nesta mesma época foi especulado que anyons poderiam explicar alguns aspectos peculiares dos supercondutores de alta temperatura, o que depois mostrou-se falso, mas serviu para colocar os anyons nos holofotes da comunidade teórica. No entanto, foi através da proposta de Kitaev [5] de um protocolo de computação quântica tolerante a erros e que tem anyons como personagens principais, que o interesse pela exótica física dos anyons cresceu significativamente. A idéia predominante na literatura atual é que anyons devem estar presentes em fases quânticas da matéria condensada que exibem um tipo especial de ordem topológica que não envolve quebra espontânea de simetria. Infelizmente, detectar anyons não é uma tarefa fácil, apesar de vários efeitos indiretos já terem sido observados. A detecção direta e a manipulação de anyons é sem dúvida um dos grandes problemas abertos da física contemporânea.
Em um artigo recente [6], pesquisadores do Instituto Max-Planck da Alemanha e da Universidade John Hopkins dos Estados Unidos juntamente com o americano Frank Wilczek (prêmio Nobel de Física de 2004) propuseram um esquema experimental que poderá permitir a detecção direta de anyons através de técnicas tradicionais espectroscópicas. Eles mostraram que a estatística quântica dos anyons deixa uma assinatura específica em uma função espectral que é experimentalmente acessível através de espalhamento de nêutrons. Analisando um modelo solúvel de dois anyons, eles mostraram que a função espectral cresce com a frequência acima do limiar de excitação com uma lei de potência com expoente que depende do tipo de anyon, sendo por exemplo linear para férmions, abrupto para bósons e raiz quadrada para semions (anyons previstos para um tipo especial de líquido de spin).
Este resultado poderá ter um grande impacto na comunidade científica, principalmente se a implementação experimental do método em sistemas controlados, como redes óticas de átomos frios, for bem-sucedida em curto prazo. Do ponto de vista tecnológico, mais especificamente na computação quântica topológica, a detecção direta de anyons pode ser um primeiro passo para manipulá-los eficientemente em sistemas artificiais, como em circuitos quânticos tolerantes a erros. De qualquer forma, a detecção direta de anyons trará um enorme avanço conceitual no entendimento das exóticas propriedades quânticas de sistemas bidimensionais.
[1] Crédito da Imagem: Public Domain. URL: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Flatland_cover_detail.jpg#/media/File:Flatland_cover.jpg.
[2] Flatland: A Romance of Many Dimensions (No Brasil: Planolândia: Um Romance de Muitas Dimensões, animação 2007). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=OgiO32MDq3k.
[3] AK Dewdney. Two Dimensional Science and Technology. J Recreate Math 12 16 (1979).
[4] JM Leinaas and J. Myrheim. On the Theory of Identical Particles. Nuovo Cimento B 37, 1 (1977).
[5] AY Kitaev. Fault-tolerant Quantum Computation by Anyons. Annals of Physics 303, 2 (2003).
[6] SC Morampudi et al. Statistics of Fractionalized Excitations through Threshold Spectroscopy. Phys Rev Lett 118, 227201 (2017).
Como citar este artigo: Antônio Murilo Macedo. Anyons e a exótica Planolândia. Saense. URL: http://www.saense.com.br/2017/06/anyons-e-a-exotica-planolandia/. Publicado em 09 de junho (2017).