Matheus Macedo-Lima
13/04/2016
Quando se fala em abuso de substâncias instintivamente pensamos em químicos como etanol, nicotina ou cocaína. Porém, se pensarmos bem, é bastante frequente nos depararmos com pessoas que se diagnosticam “chocólatras”, ou que não conseguem comer sem um saleiro em mãos. Sem contar os “viciados” em picanha, pães, bacon ou manteiga. Consegue se identificar? Pois bem, embora menos prejudiciais do que a maioria das “drogas de abuso”, infelizmente o abuso de alimentos hiperpalatáveis (termo científico para “muito gostosos”) é responsável por grandes problemas na sociedade moderna, como acidentes vasculares, obesidade e diabetes. O sentimento de culpa após comer demais naquela festa de aniversário tem uma boa causa…
O vício por comer é considerado hoje similar à dependência de drogas recreativas e ambos podem ser avaliados utilizando os mesmos critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais (o DSM). Utilizando esses critérios, estima-se que 6% da população americana com peso normal seja dependente de comida. Esse número chega a 37% na população obesa [2]. Se o vício por comer pode ser considerado uma desordem mental, será que não deve ser tratado (leia medicado) tal como uma?
Uma tentativa de responder essa pergunta foi publicada por um grupo Australiano no mês passado [3]. Os pesquisadores se embasaram no seguinte raciocínio: ingerir açúcares (alimentos hiperpalatáveis em geral) acarreta mudanças no cérebro bem parecidas com as causadas por uma droga recreativa. O uso agudo, de ambos, causa uma elevação rápida nos níveis de dopamina nos “centros do prazer” (núcleo accumbens e estriado). O consumo prolongado de drogas de abuso causa um desbalanço de neurotransmissores nessas áreas devido a mudanças na expressão de alguns receptores celulares, como os de dopamina e acetilcolina. O receptor de acetilcolina no núcleo accumbens é chamado de receptor nicotínico. Por quê? Exatamente! A nicotina do cigarro também age nesse receptor, imitando os efeitos do neurotransmissor acetilcolina, o que justifica os efeitos viciantes do cigarro. Então, os cientistas decidiram testar se drogas comumente utilizadas no tratamento do abuso de nicotina funcionariam para tratar o abuso de açúcar.
Assim como nós humanos, é fácil viciar ratos em açúcar. Basta dar-lhes a escolha entre uma garrafa de água açucarada e uma insípida e os ratos vão ingerir com muito mais avidez da água açucarada. Após conseguir isso, os cientistas trataram os ratos com as drogas antitabagismo e quantificaram a ingestão da água açucarada. Os ratos tratados passaram a ingerir menos água açucarada do que os não tratados. O mesmo experimento foi feito com água contendo adoçante (sacarina), e o mesmo efeito das drogas foi observado, indicando que é o “desejo” pelo sabor adocicado que é inibido pelas drogas e não o “desejo” pelas calorias do açúcar. Além disso, os cientistas avaliaram a quantidade de receptores nicotínicos no núcleo accumbens dos ratos viciados em açúcar e observaram alterações similares às que ocorrem em ratos viciados em nicotina.
Esse estudo mostra que o vício em açúcar é bem parecido com o vício em nicotina, e pode ser tratado de forma semelhante, ao menos em ratos. É preciso um estudo em humanos para descobrir se esse efeito também pode ser observado, e se ele é também encontrado com outros alimentos hiperpalatáveis, para que se possa considerar esse tipo de intervenção na prática clínica. Por hora, talvez se deva considerar a criação de uma “associação de chocólatras anônimos”…
[1] Crédito da imagem: Rhonda Oglesby (Flickr) / Creative Commons (CC BY 2.0). URL: https://www.flickr.com/photos/roglesby/3724452687/.
[2] A Meule. How prevalent is “food addiction”? Front Psychiatry 2, 61 (2011).
[3] M Shariff et al. Neuronal Nicotinic Acetylcholine Receptor Modulators Reduce Sugar Intake. PLoS One 11, e0150270 (2016).
Como citar este artigo: Matheus Macedo-Lima. O vício por comida pode ser medicado. Saense. URL: http://www.saense.com.br/2016/04/o-vicio-por-comida-pode-ser-medicado/. Publicado em 13 de abril (2016).