Carlos Anselmo Lima
27/06/2016

Estrutura do PSA (Antígeno Prostático Específico). [1]
Estrutura do PSA (Antígeno Prostático Específico). [1]
Pelo conceito simplista, o câncer é entendido como uma doença com curso natural fatal. Essa definição se torna verdadeira quando o paciente tem seu diagnóstico a partir dos sinais e sintomas clínicos. Quando o diagnóstico for precoce, a cura real pode ser alcançada. O diagnóstico antes dos sinais e sintomas pode ser obtido através de práticas de detecção precoce, ou rastreamento. Aplicam-se testes para detectar o câncer em uma população aparentemente sem câncer. Definem-se grupos e faixas etárias específicas para entrar nos programas de rastreamento, usualmente por meio de políticas públicas.

Por outro lado, o diagnóstico em fase subclínica traz alguns dilemas de conduta oncológica porque o termo câncer engloba anormalidades celulares com curso natural largamente variável e envolve detecção de lesões que podem ter crescimento rápido, progressão lenta, parada do crescimento e, até mesmo, regressão. Para algumas lesões assim detectadas, o tratamento empregado é, às vezes, considerado abusivo, ou sobretratamento, visto que pode causar dano pelas complicações produzidas.

Muitas lesões detectadas não são passíveis de progressão para causar sintomas, nem levar à morte, como em muitos tumores de tireoide; ou mesmo a progressão acontece tão lentamente que o paciente morre por outras causas antes de desenvolver o sintoma, como ocorre no caso dos tumores de próstata. Essas lesões são chamadas de indolentes e configura o que se chama de sobrediagnóstico. Existem pesquisas que explicaram o curso natural desses tumores [2].

Existem benefícios a partir da prática de rastreamento! Baseado na hipótese de que o câncer tem um curso progressivo e gradual, diagnosticar cedo serve para diminuir a mortalidade. O rastreamento dos tumores de cólon e reto e do colo do útero detecta as lesões pré-cancerígenas, impedindo a transformação, portanto diminui a detecção de casos novos de câncer, ou a incidência. Para a mama e a próstata, detecta-se verdadeiramente os casos de câncer, assim posto, aumento da incidência, mas com pouco impacto nas estatísticas de mortalidade. O benefício vem da detecção de lesão escamosa do colo uterino e pólipos adenomatosos colônicos, que não são câncer, mas podem progredir.

Para as lesões indolentes, o benefício é questionável, principalmente se houver complicações do diagnóstico e do tratamento. Geralmente se morre com elas e não delas. Desenvolveu-se então o conceito de lesões IDLE – Lesões Indolentes de Origem Epitelial, as quais, como são indolentes, têm mais probabilidade de detecção por rastreamento; contudo, tem baixo risco de metástases. O diagnóstico dessas lesões contribui para o sobrediagnóstico e as abordagens terapêuticas, para o sobretratamento. Exemplos dessas lesões são encontrados na mama, próstata, tireoide e até pulmão [3].

Para o câncer de tireoide, o aumento da incidência se dá pela detecção de tumores papilíferos de menos de 2 cm, utilizando-se a ultrassonografia e a punção por agulha fina. No entanto, a mortalidade é muito baixa. O rastreamento do câncer de próstata apresenta o maior risco de sobrediagnóstico e sobretratamento, visto que aos 60 anos, o risco de câncer oculto é de 50-60% e que se tratado, a sobrevida específica é de 99% e 97% aos cinco e dez anos respectivamente. No entanto, existe uma alta taxa de complicações sexuais, urinárias, gastrointestinais e sepses com o diagnóstico e tratamento. A discussão atual é reclassificar muitas dessas lesões para IDLE, ou seja, não câncer. Para a mama, existe a detecção de tumores menos agressivos em 30% dos casos, sem, contudo, se determinar o impacto do sobrediagnóstico ainda. Propõe-se, no caso, o emprego de marcadores moleculares para evitar tratamentos com quimioterapia, radioterapia e cirurgias maiores [3].

Há propostas para evitar o sobrediagnóstico, como sejam: diminuir a indicação de biópsia; provavelmente modificar as estratégias de rastreamento, privilegiando aquelas baseadas no risco; concentrar o rastreamento em centro de grande volume; e identificar indivíduos para os quais o não rastreamento seja a melhor conduta. A mudança da prática torna-se um grande desafio, já que também existe dano causado pela ansiedade, pelo medo da recidiva improvável e pelos efeitos do tratamento. É sensato evitar meios de diagnósticos não necessários, aumentar o intervalo do rastreamento necessário, e evitar que sejam feitas orientações para biópsias nos laudos [2].

Por fim, não procuramos eliminar o rastreamento, mas individualizar suas aplicações e avaliar o custo-benefício, porque o sobrediagnóstico, segundo H. Gilbert Welch [4], causa doença às pessoas pela procura de saúde.

[1] Crédito da imagem: EAS (Own work) [CC BY-SA 3.0 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0)], via Wikimedia Commons. URL: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:PSA_KLK3_PDB_2ZCK.png.

[2] JR Bhatt and L Klotz. Overtreatment in cancer – is it a problem? Expert Opin Pharmacother 17, 1 (2016).

[3] S Srivastava et al. Research Needs for Understanding the Biology of Overdiagnosis in Cancer Screening. J Cell Physiol 231, 1870 (2016).

[4] HG Welch et al. Overdiagnosed: making people sick in the pursuit of health. Beacon Press (2012).

Como citar este artigo: Carlos Anselmo Lima. Dilemas da oncologia moderna: rastreamento, sobrediagnóstico e sobretratamento. Saense. URL: http://www.saense.com.br/2016/06/dilemas-da-oncologia-moderna-rastreamento-sobrediagnostico-e-sobretratamento/. Publicado em 27 de junho (2016).

Artigos de Carlos Anselmo Lima     Home