Bruno Carneiro da Cunha
11/05/2017
No ambiente de selva em que a física de partículas estava no início dos anos 60, com várias dezenas de partículas instáveis e nenhuma ideia de como ordená-las, surgiu a proposta que partículas hadrônicas, como o próton e o nêutron, eram formadas por constituintes mais fundamentais.
A proposta parecia estranha aos olhos de quem não estava a par das características dessas partículas instáveis: os quarks deveriam ter carga fracionária (1/3 ou 2/3 da carga do elétron), e deveriam ter um outro tipo de carga, chamada de “cor”, que permitiria que eles se juntassem para formar hádrons e mésons. O seu próprio batismo, retirado por Murray Gell-Mann da críptica novela de Joyce, “Finnegan’s wake”, refletia a dubiedade da proposta. Que, no entanto, foi um sucesso experimental estrondoso, e formou a base do modelo padrão de partículas que conhecemos hoje.
Na época da proposta, para explicar as partículas vistas, só eram necessários três tipos (ou sabores) de quarks: o “up”, o “down” e o “strange”. O “up” e “down” constituíam os mésons e hádrons mais leves e comuns, como o méson pi (píon) o próton e o nêutron, enquanto o “strange” aparecia em certas partículas instáveis (“estranhas”) como o káon e o bárion lambda.
Alguns anos antes, um novo fenômeno tinha sido descoberto experimentalmente, associado com o káon neutro [2], que aparece em dois tipos em força nuclear forte: um é um estado ligado entre um quark strange e um antiquark down (“K-zero”), e o outro associado ao antiquark strange e o quark down (“K-zero-barra”). O K-zero-barra é a antipartícula do K-zero.
Cada partícula é associada a uma freqüência de vibração distinta, relacionada com sua massa, que recebe contribuição das forças fundamentais da natureza. Desta forma, a força nuclear forte associa dois modos de vibração distintos para o K-zero e K-zero-barra. Porém, os quarks também sentem a força nuclear fraca, que tem a propriedade de misturar os dois modos de vibração, fazendo que o K-zero “lentamente” se transforme no K-zero-barra. Este fenômeno é chamado de oscilação do káon neutro, e é análogo ao que acontece com os neutrinos, já mencionado nesta coluna (veja aqui).
Uma bela analogia deste fenômeno é o pêndulo de Foucault, que é um pêndulo livre para mudar seu plano de oscilação. Quando ele é suspenso em lugares com latitude alta (como Paris), a força de Coriolis faz com que a direção de oscilação do pêndulo lentamente mude de direção. Após um determinado número de horas, o pêndulo vai passar de um modo de oscilação leste-oeste para um modo de oscilação norte-sul. Nesta analogia, a força nuclear fraca faz com que um tipo de káon neutro se transforme no outro.
As duas formas de káon neutro são radicalmente diferentes nos seus modos de decaimento, um deles decai em dois píons, em uma reação rápida e o outro modo em três píons, em uma reação lenta. Da mesma forma que a força de Coriolis se mantém constante no eixo leste-oeste, mas tem uma pequena variação no eixo norte-sul, a força nuclear fraca atua de forma diferente com o káon neutro rápido do que com o káon neutro lento. Assim, há uma pequena chance do káon neutro rápido decair em três píons, e vice-versa: os káons neutro lento decair em dois píons.
Esta propriedade é chamada de “mistura”, pois o káon neutro rápido pode ser entendido como uma superposição quântica dos estados da força forte K-zero e K-zero-barra. Na verdade, o decaimento do káon neutro lento em dois píons acarreta uma propriedade profunda da força nuclear fraca: ela trata de forma desigual partículas (K-zero) de anti-partículas (K-zero-barra).
Este efeito dos káons, chamado de violação CP (carga-paridade) foi descoberta experimentalmente em 1964, rendeu o prêmio Nobel a Cronin, Fitch em 1980 [4]. É uma propriedade do quark strange, que é compartilhada com os quarks de segunda e terceira geração (strange, charm, bottom e top). Com os quarks bottom, a alta quantidade de modos de decaimento levou à criação das “B(eauty)-factories”, aceleradores dedicados ao estudo da violação CP em mésons e hádrons compostos com o quark bottom. Exemplos incluem o BaBar na universidade de Stanford, e o Belle no Japão, que descobriram o fenômeno de violação CP nos quarks bottom, o que valeu o prêmio Nobel a Kobayashi e Maskawa em 2008. Atualmente, o LHCb está em operação no CERN, e o Belle II está sendo comissionado no acelerador KEK no Japão (vídeo), e deve entrar em operação em 2018. A modelagem teórica da violação CP com quarks bottom costuma ser complicada, com os resultados previstos não batendo muito bem com os experimentos.
Por trás dessa discrepância, pode estar a resposta de um grande mistério do universo: como a força fraca trata diferentemente algumas partículas das suas anti-partículas, ela pode explicar o porquê de vermos uma quantidade muito maior de matéria do que de antimatéria no universo, um fato que é verificado desde nossa experiência mundana até em eventos astrofísicos e cosmológicos. O problema é que a força nuclear fraca é, bem, muito fraca para explicar a impressionante proporção entre matéria e antimatéria vista no cosmos. Uma solução seria que a força forte também apresentasse a violação CP, fato que experimentalmente não ocorre, e ninguém sabe porquê: uma consequência direta dessa violação seria um momento de dipolo elétrico do nêutron bilhões de vezes maior que o medido. O fato deste momento de dipolo ser tão baixo mostra que há alguma simetria extra na força forte que ainda não conseguimos articular — apesar de haver algumas propostas.
Explicar as fontes de violação CP no modelo padrão é uma maneira de tentar explicar em última instância como necessariamente uma evolução temporal “para frente no tempo” forçosamente inclui uma percepção de um universo composto essencialmente por partículas e não por antipartículas. Se as fontes não forem suficientes, é a prova que o modelo está incompleto.
[1] Crédito da imagem: Nbrouard / Creative Commons (CC BY-SA 3.0). URL: https://en.wikipedia.org/wiki/Foucault_pendulum#/media/File:Foucault-rotz.gif.
[2] G Buchalla. Kaon and Charm Physics: Theory. arXiv:hep-ph/0103166 (2001). URL: https://arxiv.org/pdf/hep-ph/0103166.pdf.
[3] Crédito da imagem: Wikimedia Commons / Creative Commons (CC BY-SA 3.0). URL: https://en.wikipedia.org/wiki/CP_violation#/media/File:Kaon-box-diagram-alt.svg.
[4] Uma breve síntese, e links para informações adicionais, podem ser encontradas em https://hep.uchicago.edu/cpv/history.html.
Como citar este artigo: Bruno Carneiro da Cunha. Carga, paridade e a seta do tempo. Saense. URL: http://www.saense.com.br/2017/05/carga-paridade-e-a-seta-do-tempo/. Publicado em 11 de maio (2017).