Antônio Murilo Macedo
11/03/2018
Reconhecer e armazenar padrões é talvez a atividade mais comum que nosso cérebro faz no dia-a-dia. Identificamos facilmente nossos parentes, amigos e conhecidos através de traços como fisionomia, linguagem corporal e tom de voz. É difícil imaginar como seria nossa vida de perdêssemos esta importante habilidade. No entanto, portadores de cegueira facial (prosopagnosia) são incapazes de reconhecer uma face, apesar de não terem nenhum problema com a visão. É uma condição neurológica na qual o cérebro é incapaz de processar as informações do campo visual e estabelecer uma unidade identificadora de um rosto relacionando suas partes: olhos, nariz, boca, etc. Tão misteriosa quanto a doença é o próprio entendimento do processo neurológico que leva o cérebro normal a reconhecer uma face.
Do ponto de vista matemático, o reconhecimento de padrões está ligado à habilidade de compressão de dados de alta dimensionalidade (muitas variáveis) em representações de baixa dimensionalidade (poucas variáveis). Essas representações são em geral fáceis de armazenar e manipular. Por exemplo, se você fechar os olhos e tentar mentalmente visualizar seus pais, a imagem que vai aparecer é bem menos detalhada que a imagem real. No entanto, seu cérebro tem suficiente informação sobre os rostos de seus pais para gerar em um sonho, por exemplo, imagens essencialmente indistinguíveis das reais. Um entendimento detalhado do processo de reconhecimento de padrões é essencial para o desenho de máquinas inteligentes capazes de processar de maneira eficaz imagens e sons.
Uma abordagem que tem tido bastante sucesso no reconhecimento de padrões é o uso de redes neurais (uma espécie de cérebro artificial) executando protocolos denominados de “aprendizagem de máquina”. Em sua forma mais simples, a abordagem é essencialmente uma maneira eficaz de usar uma base de dados de situações conhecidas para inferir informação sobre uma situação nova, ou seja, é um tipo especial de inferência estatística. Aplicações em física incluem protocolos de classificação de fases da matéria condensada, detecção de emaranhamento e até o controle de dinâmica quântica.
Um aspecto intrigante da solução de problemas por redes neurais é que muitas vezes o processo de aprendizagem de máquina ocorre sem supervisão humana, ou seja, a rede neural pode descobrir fenômenos novos sem nenhum conhecimento prévio. Um resultado particularmente espetacular foi alcançado pelo projeto AlphaGo da empresa DeepMind que usou duas redes neurais combinadas e atingiu performance super-humana no jogo de Go, tendo vencido os melhores jogadores com regras de torneio oficial. O notável feito foi descrito em detalhes no documentário “AlphaGo” do Netflix. O projeto seguinte da DeepMind, o AlphaGo Zero [2], foi ainda mais impressionante, pois além de ser uma única rede neural, ela foi treinada pelo método “tábula rasa” no qual apenas as regras básicas do jogo foram fornecidas. O AlphaGo Zero aprendeu o resto sozinho e superou o projeto anterior, o AlphaGo, em apenas 36 horas de treinamento.
No entanto, é a mecânica quântica que oferece o ambiente ideal para testar a capacidade computacional das redes neurais. A equação de Schrödinger fornece uma descrição essencialmente completa da física na escala dos átomos e moléculas, mas resolver esta equação na grande escala é um desafio computacional espetacular. Temos então uma situação altamente frustrante. Sabemos a equação que descreve a grande maioria dos fenômenos naturais, mas não sabemos resolvê-la. Para dar uma ideia do tamanho do desafio computacional, um fenômeno na escala macroscópica exigiria a solução da equação de Schrödinger para pelo menos 1023 partículas (o número de Avogadro). A chave para a solução do problema emergiu com a percepção de que a representação usual dos estados quânticos é muito ineficiente e a maior parte do espaço é ocupado com informação irrelevante. Se concentrarmos a atenção na porção que contém a informação relevante, podemos reformular matematicamente o problema de modo que um tratamento numérico torna-se viável. Este subespaço de estados relevantes pode ser representado de forma eficiente pela técnica de redes de tensores. A boa novidade aqui é que os estados quânticos construídos com redes de tensores podem ser eficientemente representados e manipulados por redes neurais. Portanto, redes neurais e aprendizagem de máquina oferecem um paradigma novo e poderoso para resolver problemas complexos da física quântica. O problema da tomografia de estados quânticos é um desses problemas desafiadores.
A tomografia de estados quânticos tem por objetivo central a obtenção de uma descrição completa do estado quântico do sistema através de um conjunto limitado de medições experimentais. É, portanto, um problema típico de reconhecimento de padrões. Em um artigo recente [3], pesquisadores de universidades do Canadá, Suíça e Estados Unidos mostraram como usar técnicas de redes neurais e aprendizagem de máquina para resolver o problema da tomografia de estados quânticos. Os autores utilizaram um tipo especial de rede neural, denominada máquina de Boltzmann restrita, que contém dois tipos de camadas de neurons, uma visível com os qubits físicos e outra escondida. Eles demonstraram que a rede é capaz de operar com boa precisão com estados entrelaçados de mais de uma centena de qubits. Como importante aplicação, os autores demonstraram como estimar a entropia de emaranhamento diretamente de dados experimentais, que é uma grandeza muito difícil de ser obtida por métodos tradicionais.
Este importante resultado, quando combinado com outros sucessos de redes neurais e aprendizagem de máquina, demonstram que podemos estar testemunhando a emergência de um novo paradigma conceitual. Redes neurais poderiam nos ajudar a desenvolver uma linguagem sintética para apresentar as leis da física de forma que capturem apenas a informação relevante de cada fenômeno. Em uma simples analogia computacional, podemos dizer que as redes neurais podem nos ajudar a desenvolver uma “linguagem de alto nível” para substituir a atual “linguagem de máquina” da mecânica quântica.
[1] Crédito da Imagem: fthr (Flickr) / Creative Commons (CC BY 2.0). https://www.flickr.com/photos/24779451@N00/13349511113.
[2] D Silver et al. Mastering the game of Go without human knowledge. Nature 10.1038/nature24270 (2017).
[3] G Torlai et al. Neural-network quantum state tomography. Nature Physics 10.1038/s41567-018-0048-5 (2018).
Como citar este artigo: Antônio Murilo Macedo. Tomografia quântica com redes neurais. Saense. http://www.saense.com.br/2018/03/tomografia-quantica-com-redes-neurais/. Publicado em 11 de março (2018).
No Livro “Ensaio sobre a cegueira” do Saramago, um oftalmologista tenta investigar a causa de cegueira incomum de um de seus pacientes e suas primeiras especulações foram ‘agnosia’ ou uma ‘aumorose’. O curioso é ter lido alguns capítulos deste livro e umas 3 ou 4 horas depois ler um texto no saense que tem o termo “prosopagnosia”. No seu texto você escreve: “Tão misteriosa quanto a doença é o próprio entendimento do processo neurológico que leva o cérebro normal a reconhecer uma face” no texto do Saramago, ao falar da investigação do médico para encontrar uma justificativa para a misteriosa cegueira de seu paciente, ele escreve “Há mil razões para que o cérebro se feche, só isto, e nada mais, como uma visita tardia que encontrasse cerrados os seus próprios umbrais.”, acho fantástico o quanto a arte é lógica e o quanto a lógica é arte e o quanto ambas se confundem. Congratulações pelo texto! o engraçado é que esse texto aponta que poucos os conceitos de” linguagem de maquina” e “linguagem de alto nível” tendem a se confundir legal num determinado futuro aí (se tudo der certo) a ponto de robôs terem crises de existência (risos).
Oi William, muito interessante você ter lembrado do livro de Saramago. De fato, o funcionamento do cérebro ainda é um mistério em vários aspectos e talvez as redes neurais venham a nos ajudar a entendê-lo melhor. Parabéns pelo seu inteligente comentário.