UFRGS
29/07/2019
Em dois artigos publicados na revista científica The Lancet, um grupo de 13 pesquisadores de dez países descreveu a conjuntura da epidemia global de doenças bucais e discutiu como ela se reflete nas desigualdades socioeconômicas, além de analisar seus determinantes sociais e comerciais e seus custos em termos de sofrimento humano e impacto social e econômico. Os textos também alertam para a urgência da necessidade de uma reforma do sistema odontológico em nível mundial e argumentam que a odontologia precisa ser integrada aos serviços de atenção primária e se concentrar mais na promoção e na manutenção da saúde bucal, no lugar da abordagem de tratamento intervencionista que predomina atualmente. O lançamento dos artigos ocorreu na última quarta-feira, 24 de julho, em um evento em Londres. Os trabalhos também serão enviados pela Lancet para discussão na Assembleia Geral das Nações Unidas, como uma defesa do acesso universal à saúde e da inclusão da odontologia nesse acesso.
Apesar de, em geral, poderem ser prevenidas, as doenças bucais afetam 3,5 bilhões de pessoas em todo o mundo, de acordo com o Global Burden of Disease, programa que envolve 3,6 mil pesquisadores e mais de 145 países. Exemplos dessas enfermidades são as cáries, as inflamações na gengiva, a perda de dentes e o câncer de boca. Segundo levantamento feito por pesquisadores dos Estados Unidos e do Reino Unido, as cáries não tratadas em dentes permanentes foram o problema de saúde que mais afetou pessoas no mundo em 2010, atingindo cerca de 35% da população mundial.
“Se a gente for comparar com os anos 70, o número de cáries, especialmente em crianças, reduziu drasticamente. No Brasil, nos anos 80, as crianças tinham seis dentes cariados, hoje elas têm em média menos que dois. Na Noruega, nos anos 70, crianças de 12 anos tinham 14 dentes cariados na média. E hoje elas têm menos que um. Então, as pessoas têm essa ideia correta de que houve uma redução de cáries, porém a cárie não tratada, as lesões de cárie, no mundo inteiro, ainda são as mais prevalentes. As pessoas têm a ideia de que os grandes problemas de saúde são diabetes, Aids, câncer. Em parte, sim, mas isso acontece muitas vezes mais para o final da vida e atinge relativamente menos gente. E cárie é uma coisa bastante comum, mais do que tu imaginas. As cáries não tratadas afetam especialmente a população de locais como China, Índia, África e América Central”, comenta o professor da Faculdade de Odontologia da UFRGS Roger Keller Celeste, um dos autores dos artigos. E complementa: “Na Inglaterra, há poucos anos, saiu um dado interessante que mostrou que a cárie dentária era o principal motivo que levava crianças a serem internadas no hospital com anestesia geral para tratamento. Isso é um negócio, vamos dizer assim, absurdo, mas mostra o quanto é crítica a situação e o quanto as pessoas negligenciam ainda que a cárie é um problema muito grave no mundo inteiro”, complementa.
As doenças bucais trazem consequências tanto para as pessoas diretamente afetadas e suas famílias como para a sociedade como um todo. As dores crônicas e a dificuldade para mastigar prejudicam a qualidade de vida, e os tratamentos demandam que o indivíduo se ausente da escola ou do trabalho. Além disso, dentes perdidos ou cariados minam a autoestima da pessoa e tornam ainda mais difícil a tarefa de se conseguir um emprego. Os custos dos tratamentos, por sua vez, impactam os orçamentos familiares e dos sistemas de saúde. “Imagina a situação de uma família em que as crianças têm tantas cáries que precisam ser hospitalizadas. Quem é que vai levar a criança ao hospital? Alguém tem que parar de trabalhar para fazer isso e também para ficar uma semana com ela sendo tratada ali. E tem um impacto financeiro bastante grande. Ele corresponde a alguma coisa em torno de 4% a 6% de todo o orçamento da saúde do mundo só para tratamento odontológico. E tem ainda os dias perdidos de trabalho. Acaba sendo um problema econômico grande para o indivíduo e para os países. O impacto econômico causado pelos problemas de saúde bucal perde para poucas doenças. Muitas das enfermidades que acabam comprometendo seriamente a capacidade de trabalho ocorrem numa fase da vida em que pessoa já está aposentada ou quase aposentada”, comenta Celeste. Outra situação séria que o professor cita, comum nos Estados Unidos, mas observada também no Brasil, é a falência por problemas de saúde. Esse é o caso de famílias que precisam de atendimento privado e vão à falência com seus altos custos ou mesmo de idosos que comprometem quase toda a sua renda com a compra de medicamentos.
Vale ressaltar, contudo, que nem todos são afetados pelos problemas bucais da mesma forma. As desigualdades sociais se refletem na saúde da população. Os mais pobres e os grupos marginalizados – como pessoas em situação de rua, presidiários e refugiados – são os que mais sofrem com os problemas de saúde bucal. Em outro estudo, publicado em 2018, Celeste e o professor da Universidade de Estocolmo Johan Fritzell demonstraram, a partir da análise dos dados de um grupo de moradores da Suécia acompanhados por mais de 40 anos, que as desigualdades socioeconômicas são estabelecidas cedo na vida, mantêm-se até a velhice e se relacionam diretamente com os três parâmetros de saúde avaliados: a saúde bucal, o estresse e a dor. “Nem na Suécia, que é um país com fortes políticas de proteção, existe grande mobilidade. É uma ilusão achar que todo mundo tem igual oportunidade de subir e descer na vida. A verdade é que nem em países que tentam reduzir as desigualdades essa mobilidade social é grande. As oportunidades não são iguais”, aponta Celeste.
Determinantes sociais e comerciais
Os trabalhos divulgados na Lancet também discutem o papel de determinantes sociais e comerciais na saúde bucal. Esses determinantes envolvem a ampla gama de fatores biológicos, comportamentais, psicossociais, econômicos, comerciais e políticos que influenciam as condições de vida da população e, consequentemente, a qualidade de sua saúde bucal. Os determinantes sociais envolvem desde os chamados determinantes proximais, que consistem nos fatores comportamentais e biológicos em nível individual, como a dieta, o consumo de álcool ou tabaco, a prática de atividades físicas e os hábitos de higiene de cada um, até os determinantes estruturais. Mais amplos, estes incluem os contextos socioeconômicos, políticos e ambientais em que o sujeito está inserido. Os determinantes comerciais, por sua vez, referem-se às estratégias corporativas. Aí entram o poder político e econômico das grandes empresas, seus lobbies políticos, suas campanhas de marketing e sua influência nas pesquisas, na mídia e no comportamento dos consumidores.
“Quando a gente fala em determinantes comerciais, a primeira coisa que vem à mente, são os interesses da indústria, especialmente da indústria alimentícia. Quando a gente fala em determinantes comerciais da saúde, fala em determinantes que afetam a saúde das pessoas, e que a indústria, mesmo sabendo, promove aquilo ali em função do seu lucro. O lucro da empresa está na frente da saúde das pessoas. Isso é uma coisa sórdida, totalmente antiética, mas é o que acontece. Então, se a gente deixar solto, desregulado, a indústria vai continuar vendendo cigarro e fazendo propaganda de cigarro, mesmo sabendo que o cigarro vai matar as pessoas. Eles fazem o mesmo com açúcar, fazem o mesmo com comida ruim que engorda, que dá cárie nas pessoas, que causa diabetes, porque o lucro deles é mais importante do que a saúde das pessoas”, explica Celeste. As propagandas, a exclusão de determinados produtos e marcas dos pontos de venda e a omissão de informações nos rótulos de alimentos, por exemplo, limitam as escolhas individuais. Junta-se a isso o fato de que as grandes corporações também intervêm em políticas de saúde em todo o mundo. Já são conhecidas as influências da indústria do açúcar e do tabaco na pesquisa científica e na elaboração de políticas públicas.
O próprio ensino é afetado pelos interesses mercadológicos. Enquanto tem crescido o número de faculdades de odontologia no Brasil (de 220 em 2015 para 412 em 2019, segundo o Conselho Federal de Odontologia), o que se vê com frequência, segundo Celeste, são currículos muito mais guiados por demandas de mercado do que por necessidades epidemiológicas da população. “Boa parte das pessoas ainda precisa de uma prótese removível ou de uma prótese total. Mas na universidade sabe o que mais os alunos querem aprender e os professores ensinar? A fazer uma prótese fixa e, especialmente, um implante, mas o que as pessoas mais precisam não é implante”, comenta o professor. O tratamento da cárie é outro exemplo de como os interesses de mercado se refletem na qualidade do ensino e do atendimento prestado à população. Como destaca o pesquisador, apesar de sua altíssima incidência, a cárie não tem sido prioridade nas faculdades e nos consultórios. “Por ser vista como uma doença que atinge pessoas mais pobres, o que acontece é que, muitas vezes, no próprio currículo odontológico e pelos interesses de mercado, o que se trata não é cárie, é clareamento dental, é ortodontia, é facetinha de porcelana para ficar com o dente mais brilhante e mais bonito. E aí tu perguntas: mas será que as principais necessidades epidemiológicas da população são clarear os dentes, desentortar dente com orto? Não são, mas esses são os interesses da indústria, porque isso vende mais. Esse é um público que pode pagar”. O Brasil, enfatiza ele, tem um verdadeiro mercado de ensino odontológico.
Uma nova abordagem é necessária
Conforme ressalta Celeste, a maior parte dos profissionais e pesquisadores da área tem como foco o tratamento da doença e do indivíduo, em vez da prevenção. A abordagem costuma se centrar nos determinantes proximais. Desse ponto de vista, a pessoa sofre com a doença bucal porque come muito açúcar, não escova os dentes ou não tem acesso a flúor. “São questões individuais, muitas vezes comportamentais. Disso deriva que a maioria dos tratamentos também é individual”, reforça ele. Entre os riscos dessa individualização está o estímulo à culpabilização da vítima. “Eu não conheço nenhuma pessoa que come açúcar porque quer ter cárie, assim como eu não conheço nenhuma pessoa que fuma porque quer morrer de câncer de pulmão… A ideia de trabalhar com determinantes proximais de saúde também tem, muitas vezes, o problema de que ela trabalha com comportamentos em saúde fora de contexto de vida das pessoas e acaba inevitavelmente, em certo grau, culpando a pessoa pela doença. Claro, isso não significa que não haja livre arbítrio. Ninguém é obrigado a fumar, ou a comer açúcar ou a não escovar os dentes, mas, por trás disso, existem os determinantes estruturais”, afirma, enfatizando a necessidade de olhar para elementos mais longínquos.
Segundo os autores dos artigos, o modelo de tratamento odontológico dominante no mundo, intervencionista e focado no indivíduo, não tem sido eficiente. Mesmo os países mais ricos falham em combater as causas das doenças e as desigualdades na saúde bucal. Eles defendem que uma abordagem fundamentalmente diferente é necessária. Os sistemas de atendimento odontológico devem se concentrar mais na promoção e na manutenção da saúde bucal e na obtenção de uma maior equidade.
A odontologia, segundo esses pesquisadores, precisa deixar seu isolamento e integrar-se a equipes mais amplas de profissionais da saúde e aos serviços de atenção primária, bem como se tornar mais inclusiva e acessível. Nesse sentido, a inserção do atendimento odontológico no Sistema Único de Saúde brasileiro foi usado como exemplo pelos pesquisadores nos artigos. “O Brasil é um dos poucos países, senão o único, no qual o acesso ao tratamento odontológico é universal na atenção primária em saúde. Então, o Brasil é um país que serve de exemplo de como a odontologia pode ser colocada no acesso universal da atenção primária. Na maioria, a odontologia é tratada como uma área especializada, como na Suécia, na Austrália, no Canadá, na Inglaterra. Esses são países que têm um forte sistema público de saúde, mas é só médico. Não tem o dentista público de acesso quando tu precisas na atenção primária. Quando muito, ele é referenciado como atenção especializada, ou a pessoa paga do bolso, porque ele não é considerado profissional necessário para todo mundo. E no Brasil a gente tem isso, qualquer unidade básica de saúde tem dentista”, salienta Celeste.
Os artigos também destacam a urgência em desenvolver políticas públicas voltadas a limitar e esclarecer a influência das grandes empresas na pesquisa, na política e nas práticas profissionais de saúde, com foco, principalmente, em tornar mais transparentes as relações com a indústria do açúcar. Combater os determinantes comerciais das doenças bucais, bem como de outras enfermidades, deve ser uma prioridade. Regulamentação e legislação mais rígidas são necessárias para enfrentar as estratégias corporativas. Para Celeste, a saúde tem que ser uma política de governo, e todos deveriam ter o direito a uma vida saudável e livre de dor. “Essa tem que ser questão solidária. Quem está saudável e pode trabalhar teria o compromisso social de sustentar aqueles que estão doentes e não podem trabalhar”, afirma o pesquisador.
Artigos científicos
PERES, Marco A et al. Oral diseases: a global public health challenge. The Lancet, v. 394, 2019.
WATT, Richard G et al. Ending the neglect of global oral health: time for radical action. The Lancet, v. 394, 2019.
CELESTE, Roger Keller; FRITZELL, Johan. Do socioeconomic inequalities in pain, psychological distress and oral health increase or decrease over the life course? Evidence from Sweden over 43 years of follow-up. Journal of Epidemiology and Community Health, v. 72, n. 2, 2017. [1]
[1] Esta notícia científica foi escrita por Camila Raposo.
Como citar esta notícia científica: UFRGS. Artigos abordam epidemia de doenças bucais e sua relação com as desigualdades sociais. Texto de Camila Raposo . Saense. https://saense.com.br/2019/07/artigos-abordam-epidemia-de-doencas-bucais-e-sua-relacao-com-as-desigualdades-sociais/. Publicado em 29 de julho (2019).