Jornal da USP
11/11/2019
Por Alecsandra Matias de Oliveira, doutora em Artes Visuais pela ECA/USP, e Anderson Felipe Alves Santos, pós-graduando em Cultura, Educação pelo Celacc/USP
A música é o tipo de arte mais perfeita: nunca revela o seu último segredo.
(Oscar Wilde)
Faz algum tempo que um projeto musical não se resume à reunião de letras e arranjos, ele envolve, também, a criação das capas dos álbuns, os videoclipes, os figurinos e demais aspectos que permeiam os conceitos estéticos que estão por trás das intenções musicais. As interfaces entre música e artes visuais vêm das partituras publicadas em forma de folhetos ilustrados no final do século XIX, passam pelos álbuns de música com motivos art nouveau e ilustrações da Belle Époque, seguem nos envelopes ilustrados nos discos de 78 rotações e nos compactos e chegam às capas de discos e CDs. Hoje, essas conexões são expressas em pequenos avatares nas plataformas de streaming, porém, águas rolaram e muitas ainda transbordarão nesta história.
Para além do potencial de venda, as capas dos discos têm a função de engajar artes visuais e música – estabelecer um vínculo mnemônico entre as duas linguagens. Nesse sentido, o recontar a história do século XX por meio das capas dos álbuns musicais torna-se uma grande aventura: são imagens e sons que escandalizaram, moveram multidões, disseminaram ideias ou até mesmo criaram novos padrões.
Nos anos de 1960 e 1970 tem-se um enorme estrondo criativo. Artistas e designers são, verdadeiramente, recrutados pela indústria fonográfica. Andy Warhol é um dos exemplos mais potentes nessa vertente: sua capa para a banda Velvet Underground & Nico (1967) coloca em destaque a ilustração de uma banana usando cores primárias – inegável a marca de Warhol. Nas cópias iniciais do álbum, o convite “peel slowly and see” (“descasque lentamente e veja”) – nome de uma das coletâneas da banda – “descascando” o adesivo, revela-se uma banana cor de carne.
No Brasil, existem capas memoráveis, como a do Secos & Molhados, criada pelo fotógrafo Antônio Carlos Rodrigues, ou ainda, Todos os olhos, disco de Tom Zé, com capa concebida por Décio Pignatari. E como esquecer Calabar, vinil de Chico Buarque, com capa criada por Regina Vater? Todas essas capas estão nas ruas em 1973 e refletem seu tempo: a miséria do país versus a mesa farta e mórbida dos companheiros de Ney Matogrosso e o repertório semântico dos poetas concretistas paulistas. Já em Calabar, o conteúdo crítico sobre a política nacional existente na trilha musical da peça teatral Calabar: elogio à traição (proibida às vésperas da estreia), somado à foto do muro pichado de Vater, resultou na censura da capa.
Essas e outras capas são verdadeiros registros no imaginário nacional. Retornando à capa de Secos & Molhados, quatro buracos são abertos na mesa para encaixar as cabeças dos músicos, cercadas por diversos alimentos vendidos em mercearia; os pratos de papel alumínio são recortados, dando o acabamento à imagem. Em 2015, por exemplo, o artista Zed Nesti recria a capa de Secos & Molhados em efeito trompe l´oeil. Aquela imagem resgatada pela memória afetiva (de crianças dos anos de 1970) retorna com a potência do contemporâneo, recoberta de ironia e falseamento – algo “pra inglês ver”, expressão usada no Brasil e em Portugal para dizer das leis e regras demagógicas que na prática não são cumpridas e, também, o título da mostra de Nesti em 2016.
Demais capas no decênio de 1970 também merecem menção porque tocam em questões identitárias, como, por exemplo, o álbum Milton, peça gráfica elaborada por Kélio Rodrigues. Nela, Milton Nascimento traz a ancestralidade africana. O cantor transforma-se no perfil desenhado de um rei africano com túnica e joias em cores fortes e vivas. Já a capa de A Tábua de Esmeralda (1979), disco de Jorge Ben Jor, criada por Aldo Luiz, povoada por figuras religiosas e releituras de divindades africanas, traz as influências místicas comumente encontradas no universo musical do período, além da Tábua de Esmeralda, de Hermes Trismegisto, em cenários misteriosos, anunciando que “os alquimistas estão chegando”.
Nos anos de 1980, o rock nacional tem estreita ligação com as artes visuais e as bandas abusam dos efeitos gráficos. O grupo RPM converte-se em fenômeno nacional e na capa de seu disco Alex Flemming opta por, a partir da foto original, fazer fotolitos contrastantes. Desses fotolitos, o artista fez serigrafias e tirou-as de registro, adequando o branco, vermelho e preto para a composição. Flemming também faz a logomarca da banda. Em Vivendo e não aprendendo, do IRA!, Paulo Monteiro, integrante da Casa 7, coloca a banda em desenhos e tons neo-expressionistas. À primeira vista, parece que as capas dessa década trazem um tom festivo (talvez, pelo fim da ditadura), mas uma acentuação ácida e debochada coabita essas imagens.
Nesses quase 40 anos, a indústria fonográfica tem tido altos e baixos, porém o caldo cultural brasileiro nunca saiu das pautas das capas dos álbuns, particularmente com a disseminação do uso do computador e suas infinitas possibilidades. E novos resgates e denúncias emergem dentro do universo musical, especialmente na MPB (Música Preta Brasileira) – essa revolta reflete nos arranjos, nas letras, nas modalidades e ritmos e, sobretudo, nos aspectos visuais que acompanham essa postura de questionamento.
O álbum Ladrão (2019), do rapper mineiro Djonga, expõe o racismo sofrido pelo homem negro: na capa, o cantor, com semblante alegre e várias manchas de sangue, segura em uma das mãos uma vestimenta característica dos seguidores da seita Ku Klux Klan e em outra grande quantia de dinheiro e joias. Ao fundo, observando, encontra-se uma mulher negra, de idade avançada, que, dada a conjuntura do espaço, pode ser interpretada como a figura da maternidade.
Djonga não é a única voz a se erguer como representatividade dentro do rap brasileiro. Karol Conká, a rapper curitibana, é um dos exemplos mais conhecidos da geração tombamento, composta por artistas e influenciadoras que indagam questões pertinentes ao corpo da mulher negra, sua condição na sociedade brasileira e seu empoderamento. Na capa de seu último álbum, Ambulante (prêmio APCA de 2018), com direção de Negrot Alma, Conká surge envolta em fitas do “Senhor do Bonfim” e referências marítimas – uma ressignificação da estética afro-brasileira.
Já a capa do álbum Esú (2016), do rapper Baco Exu do Blues, inspirada nos registros do fotógrafo baiano Mário Cravo Neto, coloca um homem negro, logo após ser liberto da escravidão, em frente a uma igreja católica – símbolo do período barroco no Brasil. Gigantes (2018), capa criada pelo artista Maxwell Alexandre, reflete sobre as mazelas sociais e raciais no País por meio de figuras que lembram obras dos tempos egípcios – no fundo, a capa de Alexandre se dá como quebra de modelos dentro da história da arte, que se alimenta majoritariamente de uma poesia branca e europeia.
Em resumo, as capas dos álbuns musicais apresentam uma vigorosa potência: a de questionar os paradigmas sacralizados pela tradição visual. Da rebeldia e experimentações dos anos de 1960 e 1970, seguindo pelos ares debochados dos anos de 1980, até chegarem às denúncias atuais, as capas de discos tornam-se veículos para as mensagens que modulam o tempo contemporâneo, ou seja, essas capas evocam as condições e, sobretudo, as reivindicações e novas realidades que músicos e designers intencionam construir juntos – talvez, sua visualidade de revolta e inconformismo seja o último segredo da música.
[1] Por Silvio Tanaka – originally posted to Flickr as Tension, CC BY 2.0, https://commons.wikimedia.org/
Como citar este artigo: Jornal da USP. MPB e artes visuais a revolta das capas. Texto de Alecsandra Matias de Oliveira e Anderson Felipe Alves Santos. Saense. https://saense.com.br/2019/11/mpb-e-artes-visuais-a-revolta-das-capas/. Publicado em 11 de novembro (2019).