Fiocruz
03/04/2020

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Justamente no momento em que o mundo acompanha a estratégia do distanciamento como uma forma de cautela e cuidado em prol da vida, o Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) relembra um episódio de afastamento que marca de forma profunda não apenas a sua trajetória, mas a história da Ciência brasileira. Cinco décadas atrás, o Instituto, que, hoje, integra a resposta da saúde pública ao novo coronavírus (Sars-CoV-2), sofreu a cassação de pesquisadores notáveis por força do Ato Institucional nº5 (AI-5). Conheça, a seguir, um pouco da memória e do legado do episódio que ficou conhecido como Massacre de Manguinhos.

Impedidos e afastados

Dia 1º de abril de 1970. Com base no AI-5, oito pesquisadores do IOC tiveram seus direitos políticos cassados pela Ditadura Militar. No dia 6 de abril, foi publicado o decreto que determinava a aposentadoria dos cientistas e incluía mais dois nomes ao grupo, elevando o total para dez. Com isso, o IOC perdeu 14% do seu quadro de pesquisadores, que na época contava com 70 profissionais.

Mas o impacto foi muito além do que números podem mensurar. Augusto Perissé, Domingos Arthur Machado, Fernando Braga Ubatuba, Haity Moussatché, Herman Lent, Hugo de Souza Lopes, Masao Goto, Moacyr Vaz de Andrade, Sebastião José de Oliveira e Tito Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti compunham a lista publicada no Diário Oficial. Todos tinham mais de 20 ou 30 anos de atuação científica, eram reconhecidos por sua intensa produção científica e líderes de grupos de pesquisa. Muitos tinham sido chefes de laboratórios, seções e divisões.

Arte: Jefferson Mendes

O episódio ficou marcado na história da instituição e da Ciência brasileira como Massacre de Manguinhos, termo cunhado pelo entomologista Herman Lent e eternizado no livro de sua autoria lançado em 1978 [conheça a recente reedição da obra, disponível gratuitamente online]. “Há meio século, a ciência e a sociedade brasileiras se deparavam, juntamente com a cassação desses célebres pesquisadores, com o desaparecimento de arquivos, documentos e dados científicos, o desmonte de laboratórios e coleções biológicas, além de perdas significativas de recursos”, enfatiza o diretor do IOC, José Paulo Gagliardi Leite.

“No entanto, aprendemos que a distância pode nos unir de uma maneira que não imaginávamos. Diversos registros, como as cartas dos exilados trocadas com cientistas que não foram perseguidos, mostram que mesmo longe eles estavam perto. O legado e os ensinamentos desses especialistas estavam sempre presente e sua lição de resiliência e compromisso com a sociedade ainda ecoa como exemplo”, sintetiza Leite.

No contexto dos 120 anos do Instituto e da Fundação Oswaldo Cruz, a ser celebrado em maio, José Paulo enfatiza a reflexão sobre as perdas intangíveis também aportadas pelo episódio do Massacre. “Na época, uma geração de jovens estudantes e pesquisadores perderam não somente o convívio com estas lideranças presentes cotidianamente em seus ambientes científicos. Seguramente perderam a oportunidade de uma formação científica mais robusta. Isso deixa uma cicatriz que nos marca para sempre e nos impulsiona a não permitir que esta história se repita em nossa instituição”, reforça.

Pesquisas interrompidas

Nascido na Turquia e desde 1930 na Instituição, Haity Moussatché havia sido chefe da então Seção de Fisiologia e, quando a cassação ocorreu, estava à frente de pesquisas sobre reações anafiláticas, componentes de venenos de cobras e produtos naturais. O entomologista Herman Lent chefiava a Divisão de Zoologia. No IOC desde 1933, era um dos mais renomados especialistas mundiais em insetos triatomíneos, popularmente conhecidos como barbeiros, transmissores da doença de Chagas.

Hugo de Souza Lopes também era entomologista e liderava um dos poucos grupos de pesquisa brasileiros sobre moscas sacrophagídeas, cujas larvas parasitam animais. Tinha ingressado no IOC em 1931 e havia chefiado a Seção de Entomologia, que remonta às origens do Instituto, em 1900, com as contribuições de cientistas do calibre de Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Adolpho Lutz. Primeiro pesquisador negro da Instituição, Sebastião José de Oliveira foi outro entomologista de destaque cassado. Pioneiro nos estudos de mosquitos Chironomidae e responsável pela descrição de dezenas de novas espécies de insetos, atuava na Unidade desde 1939.

Arte: Jefferson Mendes

A cassação atingiu ainda o ex-diretor do IOC (1959-1960), Tito Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti. Autor de pesquisas sobre nutrição e saúde ocupacional, o pesquisador integrava os quadros de pesquisa do Instituto desde 1939 e era chefe da Divisão de Fisiologia e Farmacodinâmica. O ex-chefe da Seção de Helmintologia, Domingos Arthur Machado Filho, tinha ingressado no Instituto em 1935 e viu paralisadas suas pesquisas sobre os acantocéfalos, vermes que parasitam animais. Fernando Braga Ubatuba estava à frente da Seção de Endocrinologia até 1964. Responsável pela montagem do laboratório de padronização de hormônios, o químico atuava na Instituição desde 1942.

Formado no Curso de Aplicação de Manguinhos (IOC/Fiocruz) e contratado em 1944, Masao Goto dedicava-se tanto à pesquisa básica quanto à clínica de doenças causadas por fungos. Foi chefe da Seção de Micologia até 1964. Em 1970, investigava a ação anticancerígena de substâncias produzidas pelos microrganismos em colaboração com o químico Moacyr Vaz de Andrade, o mais jovem entre os cassados. Desde 1943 no Instituto, Moacyr dedicava-se a investigações em química e terapêutica de fungos. Já o especialista em química orgânica e bioquímica Augusto Perissé, organizador do Laboratório de Química Orgânica, foi obrigado a interromper suas pesquisas sobre venenos de Diplódodas, insetos que parasitam cobras.

Do desmonte ao reencontro

O afastamento dos pesquisadores representou a extinção de linhas de pesquisa, impactou na formação de estudantes, levou à dispersão de coleções biológicas e ao fim de cooperações nacionais e internacionais. Proibidos de atuar em estabelecimentos de ensino e pesquisa que recebessem verbas públicas, alguns seguiram para o exterior, outros dedicaram-se à Medicina e ao trabalho em empresas privadas. Parte do grupo foi acolhida na Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro.

Os dois inquéritos abertos para investigar os pesquisadores não conseguiram provar as acusações de subversão e corrupção. Depoimentos dos cientistas e pesquisas históricas sobre o período apontam que as cassações foram motivadas principalmente por divergências sobre o papel social da Instituição. Os cassados eram ativos na defesa das atividades de pesquisa, o que se chocava com as visões daqueles que desejavam restringir as ações da Unidade às atividades orientadas para a produção de vacinas e soros.

“Os motivos políticos foram apenas elementos de perseguição que foram aventados. A prova disso é que nós respondemos a vários processos e ninguém foi indiciado”, relatou Tito Arcoverde em depoimento audiovisual disponível no vídeo ‘O Massacre de Manguinhos’, de Lauro Escorel Filho. Além de entrevistas com os cientistas cassados, o média metragem exibe trechos da cerimônia de reintegração dos pesquisadores, em agosto de 1986, com a presença de personalidades como o político Ulysses Guimarães e o ator Grande Otelo.

Confira, abaixo, a versão restaurada pela VideoSaúde Distribuidora:

O retorno do cassados aos quadros do IOC/Fiocruz ocorreu somente em 1986, cinco anos após a Lei da Anistia. Dos dez pesquisadores, apenas Herman Lent optou por não voltar ao Instituto, permanecendo na Universidade Santa Úrsula, que o havia acolhido. Na cerimônia de reintegração, realizada em 15 de agosto, o então presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Sergio Arouca, defendeu a ciência e a liberdade. “O maior inimigo do pensamento autoritário é o pensamento livre, porque ao ser livre, ele se torna libertário”, declarou. [2]

[1] Imagem: Divulgação / Fiocruz.

[2] Texto de Maíra Menezes (IOC/Fiocruz).

Como citar esta notícia: Fiocruz. Massacre de Manguinhos.  Texto de Maíra Menezes. Saense. https://saense.com.br/2020/04/massacre-de-manguinhos/. Publicado em 03 de abril (2020).

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