Jornal da USP
11/05/2020
Por Ergon Cugler, pesquisador associado ao Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas (Oipp) e ao Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública (Getip) da EACH/USP
Diante da pandemia da covid-19, um dos principais alertas da Organização Mundial da Saúde (OMS) é que o enfrentamento de doenças de larga escala não demanda apenas empenho da medicina, mas da articulação de medidas sociais e econômicas adotadas por Estados que visem proteger seu povo e seu desenvolvimento.
Mesmo três décadas após a histórica 8º Conferência Nacional de Saúde – primeira aberta ao povo –, as reflexões do sanitarista Sergio Arouca se demonstram cada vez mais atuais, posicionando a definição de saúde para além da simples ausência da doença, mas resultante do direito ao bem-estar físico, social, afetivo, mental, econômico, político e da ausência de medo em suas múltiplas formas. Isto é, a compreensão sobre a saúde se incorpora à garantia de direitos diversos para a existência de uma vida digna.
No entanto, enquanto a saúde passa a demandar dimensões diversas para sua existência, a crise que enfrentamos também ultrapassa o campo da medicina e se prova cada vez mais multidimensional. Não à toa, mesmo com o alerta da pandemia da covid-19 e da vulnerabilidade de povos ao redor do mundo, o obscurantismo teima em reduzir a realidade a ponto de vista, acusando a comunidade científica de histeria e cavando crises que colocam as próprias instituições em risco.
Crise multidimensional
Tal como Arouca, o filósofo Norberto Bobbio é imprescindível para a leitura do momento que vivemos, isso porque com ele é possível desvelar signos e conceitos fundantes do Estado moderno e contemporâneo ocidental. Mais ainda, pois enquanto parcela da população brasileira se sensibiliza em evitar a circulação e conter o contágio da covid-19, em uma espécie de Revolta da Vacina às avessas, o governo federal – que deveria construir unidade nacional no combate à crise – acirra disputas e apostas políticas às custas da saúde das instituições e, em consequência, da saúde do povo.
A própria disputa política da hidroxicloroquina evidencia a fragilidade dos signos e responsabilidades estabelecidas no País. Por um lado, temos uma sociedade civil que cobra ações do governo, por outro, temos a espera de postura do Estado. Ocorre que a assincronia de informações entre governo e Estado imobiliza ações coordenadas e, com a dicotomia embaralhada, a resposta que recebemos vem especialmente do governo ao disputar a opinião pública sobre o uso da medicação com o próprio corpo técnico do Estado – sejam médicos, pesquisadores ou cientistas.
Ainda em reflexo à pandemia, a crise na saúde escancarou demais crises que já espreitavam nacional e internacionalmente, como a cíclica crise econômica, diante dos arranjos do mercado internacional, e a crise das desigualdades que, se antes já fazia vítimas pela vulnerabilidade dos povos, com o alastramento do vírus, até meio bilhão de pessoas devem ser empurradas para a pobreza (King’s College London e Australian National University).
Fato é que diante da instabilidade do governo federal e sua desarticulada relação com estados e municípios, temos uma crise multidimensional que, portanto, passa pela saúde, pela economia, pelas desigualdades, pelas instituições, pela política, pelo sistema e pela própria concepção de Estado, governo e sociedade.
Democracia e saúde como direito
Em meio às crises – nos recorda Bobbio –, a sobrevivência do sistema político deve ser buscada na sociedade civil, sendo essa a fonte de legitimação para a condução do Estado. Como é possível, portanto, garantir a saúde da nação se seus pilares adoecem com uma crise multidimensional sem precedentes?
Com o governo omisso do Estado, corremos o risco de afastar ainda mais a sociedade civil da condução da nação, colocando apenas o quadro técnico – polarizado com o discurso do governo – para gerir a crise nas vias da tecnocracia. Evidente que a guerra contra o vírus demanda expertise científica e médica, mas a superação de uma crise multidimensional demanda respostas multidimensionais; até porque, como aponta o próprio Arouca, como ponto de partida, “democracia é saúde” e “saúde é democracia”.
Nesse sentido, o valor da democracia se reforça com as crises escancaradas pela pandemia; e a tradução dos signos fundantes se apresenta como um desafio estrutural para a retomada não apenas do desenvolvimento, mas pela preservação da vida. Eis a urgência em se reafirmar o pacto social com a valorização qualitativa da democracia como projeto civilizatório, pois apenas da unidade do povo diante da crise é possível constituir sociedade civil forte o suficiente para conduzir o Estado rumo à sua saúde.
Vale citar que apesar de se reconfigurar a geopolítica mundial com os arranjos do mercado em meio à pandemia, a sensibilização consciente do povo não é algo garantido, como alguns anunciam. Diante das narrativas em disputa, a clareza inegociável que devemos ter é que não há resposta para crise qualquer sem que o povo esteja em sua construção, condução e objetivo. Surge, no entanto, a oportunidade de se propor alternativas que consolidem a prática e ágil rede de solidariedade que a sociedade civil exercita mesmo diante das crises.
Aliás, no desafio articulado de se combater a crise multidimensional que enfrentamos, nosso objetivo também se torna o ponto de partida para qualquer ação, fortalecer a democracia para que então existam condições de saúde dignas e bem-estar da nação.
[1] Imagem de mohamed Hassan por Pixabay.
Como citar este artigo: Jornal da USP. É urgente reafirmar que saúde é democracia. Texto de Ergon Cugler. Saense. https://saense.com.br/2020/05/e-urgente-reafirmar-que-saude-e-democracia/. Publicado em 11 de maio (2020).