UnB
07/05/2020

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Paulo José Cunha

(Advertência: este artigo contém parágrafos piegas, óbvios e  redundantes)

Outro dia, o filho de uma vítima da Covid-19 dizia numa entrevista na Tv que não havia percebido as dimensões da tragédia planetária trazida pela pandemia até perder a própria mãe para a doença. Para ele, tudo o que está acontecendo é tão inusitado que até ali não parecia coisa real, mas uma obra de ficção. 

Esta é a minha sensação diante do falecimento de uma prima querida, vítima do Corona Vírus. Como se dizia no tempo dos orelhões: demorou até a ficha cair. Mas quando caiu causou um terremoto interior. A tragédia é duramente real, embora pareça absurdo andar lavando as mãos a toda hora e não poder chegar perto das outras pessoas.  

Adélia Maria era piauiense, médica pediatra e residia em São Paulo. Fomos criados praticamente juntos, na convivência das brincadeiras de criança na pequena Teresina daquele tempo. Lá, a televisão só foi chegar nos anos 60, pelo sinal repetido de uma emissora maranhense. Dez anos depois foi inaugurada a primeira emissora do estado, a Tv Rádio Clube. Até então, sem Tv, as brincadeiras de rua é que selavam os afetos e criavam laços que o tempo não esfiapava. Depois que se mudou para São Paulo e eu para Brasília passamos a nos ver bem menos, só lá uma vez ou outra, quando as férias em Teresina coincidiam. Aí lembrávamos daquele tempo. Era bom. Mesmo distantes geograficamente, mantivemos vivos os laços de bem-querer.

Demora pra gente acreditar  

Nós, comunicadores, sabemos dos limites da mediação. Lá num passado muito distante, conhecido como Pré-História, os homens se comunicavam por gestos, gritos e grunhidos. Era quase impossível, transmitir uma ideia abstrata, como um sentimento. Depois vieram as   primeiras representações imagéticas, as pinturas rupestres, com cenas de caça e uma ou outra imagem da natureza. A palavra só foi chegar muito lá na frente, na forma oral. Mas já trazia um pouco da capacidade de passar emoções. Adiante, muito mais adiante, veio a palavra impressa que, mesmo não contando com a entonação para exprimir melhor os significados, inaugurou a era conhecida como História.  A evolução prosseguiu com a chegada dos meios de comunicação modernos, primeiro o jornal impresso, depois o rádio, a Tv e, por último, a internet com todos os seus infinitos recursos. Nesse rascunho ligeiro, vê-se que evoluímos bastante. Mas, curiosamente, permanecemos reféns dos limites da mediação. Nunca conseguiremos comunicar integralmente o que pretendemos. A palavra, com todos os seus recursos, é muito limitada. Se digo “casa” você entende. Mas será que entende exatamente a casa que tenho na mente e quero lhe transmitir, com sua cor, seu tamanho, sua localização? Nem que eu faça um desenho, uma pintura, um filme, conseguirei passar uma ideia completa da casa em que penso. Pois da mesma forma que a palavra, a imagem também trai a comunicação. Jamais conseguirei “dizer” com uma imagem exatamente o que penso. Em 1929 o surrealista belga René Magritte pintou um cachimbo e escreveu embaixo: Ceci n’est pas une pipe (Isto não é um cachimbo). Queria demonstrar que uma coisa é o objeto, outra é a sua representação.

Como acreditar em quem me pede pra me afastar?

Da mesma forma, posso tentar de mil formas exprimir a dor da perda da prima querida para a Covid-19. No máximo, darei uma ideia pálida do meu sentimento. Tal como a enxurrada de informações sobre a pandemia jamais exprimirá com exatidão seus impactos e riscos. Daí a dificuldade para convencer as pessoas sobre a importância do isolamento e do cuidado máximo com a higiene. Basta ver o pouco caso como muita gente não leva a sério as recomendações e vai jogar cartas nos bancos das praças ou se acotovelar nas filas dos supermercados. É preciso ter sentido na carne, como aconteceu comigo, para chegar um pouco mais perto da dimensão real da perda. Observem que escrevi “chegar mais perto”. A dor real, na sua integralidade, é incomunicável.

Neste momento estamos sendo orientados a esquecer tudo o que aprendemos ao longo de toda a nossa vida, naquelas frases repetidas:  “Devemos nos unir e andar de mãos dadas. Em vez da distância, devemos estar próximos, nos abraçar e nos beijar sempre”. De uma hora pra outra somos recomendados a fazer… exatamente o contrário! Aproximar-se de alguém tornou-se perigosíssimo. Um aperto de mão pode contaminar e até matar.  Logo ele, o simpático aperto de mão, que originalmente significou, como ensina o mestre Câmara Cascudo, em “A História dos Nossos Gestos”, sinal de paz: “Não tenha medo, minhas mãos estão vazias como pode ver, estou desarmado”.

Não é ficção, é pra valer!

Ainda assim, é possível, nem que seja de forma imperfeita, usar a   partida dolorosa dessa pessoa tão próxima para dizer, quase num   truísmo, que o que vimos acompanhando não é ficção, embora pareça, de tão terrível e inusitado. E quando me deparo com um depoimento dela própria é que me apercebo da realidade dura e inflexível em que essa situação nos atirou:

“Sou pediatra de verdade, de coração, de cabeça, de amor e amo trabalhar aqui neste hospital. É um hospital que me dá todo dia amigos, que me agrega muitos valores, eu aprendo todo dia. Me estimula a estudar, me estimula a ser cada dia um pouquinho melhor que no dia anterior”.

Pois o recado que ficou depois da partida de nossa Adélia, conhecida na família apenas como Deínha, que deixou a vida lutando pelas vidas de seus pacientes, é óbvio, redundante e até certo ponto piegas e ridículo. Mas é real:

– Acreditem: não é ficção. Afastem-se uns dos outros. Lavem muito as mãos. Essa coisa… mata. E para enfrentá-la, não basta o meu ou o seu esforço: ele precisa ser assumido por todos, sem distinção de nível   educacional, econômico, social, nem tem a ver com diferenças religiosas ou políticas.

Por isso, todo exagero é pouco, se queremos sobreviver e ajudar os outros a sobreviver. A união faz a força, diz o velho rifão. Só que agora, como me ensinou na pele a morte da Deínha, a força dessa união terá de surgir da distância, e não da proximidade. Até outro dia, uma frase como a que encerro este artigo soaria como um desvario, uma idiotice, um contrassenso. Hoje, pode significar a diferença entre ficar vivo ou morto: 

– Prove que me ama: fique longe de mim. [2]

[1] Imagem de Pete Linforth por Pixabay.

[2] Paulo José Cunha é escritor, jornalista e professor da Faculdade de Comunicação (FAC) há 19 anos, onde ministra as disciplinas de Telejornalismo e de Oficina de Texto. Já foi repórter da Rede Globo, do Jornal do Brasil, de O Globo e também trabalhou na Rádio Nacional. Hoje é apresentador da TV Câmara. Publicou os livros Vermelho – um pessoal Garantido e Caprichoso – a Terra é Azul sobre a festa de Parintins; cinco edições de A Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês; A Noite das Reformas, sobre a extinção do AI 5; Perfume de Resedá e O Salto sem Trapézio, de poesia.

Como citar este artigo: UnB. Prove que me ama: fique longe de mim. Texto de Paulo José Cunha. Saense. https://saense.com.br/2020/05/prove-que-me-ama-fique-longe-de-mim/. Publicado em 07 de maio (2020).

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