Jornal da USP
19/06/2020
Por Cleber Vinicius do Amaral Felipe, professor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, e Jean Pierre Chauvin, professor da ECA/USP
Em 1756, meses após o terremoto que atingiu Lisboa, Cascais e outras vilas do reino português à margem do Tejo (Andrade, 1964), circulou um opúsculo que atribuía causas divinas ao fenômeno, supondo-o consequência de punição enviada dos céus. Como se sabe, em poucas horas, um terço da capital foi tomado por ondas gigantescas, tremores de terra e incêndios. Fosse, ou não, pelas graças de Deus, D. José I, que assumira o trono cinco anos antes, escapou ileso.
Não poderíamos dizer o mesmo em relação a Gabriele Malagrida, jesuíta italiano que, após sólida formação em Milão, foi enviado para o estado do Grão-Pará em 1723. O padre atuou lá e em outras localidades do Brasil até 1749. No ano seguinte, voltou em definitivo a Portugal, já sob a desconfiança de Francisco Xavier de Mendonça Furtado (irmão de Sebastião José de Carvalho e Melo), que governava o estado do Maranhão e Grão-Pará. A controvérsia aumentava e se tingia de cores dramáticas.
O livreto assinado pelo jesuíta era uma resposta, do ponto de vista providencialista, a um folheto que circulou em Lisboa, que atribuía o terremoto a causas naturais, coerentemente com as instruções de Sebastião José de Carvalho e Melo (Mury, 1875; Butiña, 1902; Bethencourt, 1994; Medeiros, 2017).
Nos anos seguintes, as tensões entre o ministro e os jesuítas aumentaram. O controverso atentado ao rei em 1758, atribuído à família Távora (impiedosamente castigada por ordem da Real Mesa Censória), acabou por envolver Malagrida – que já andava sob a mira do futuro Marquês de Pombal e era alvo de murmurações na corte. Condenado ao cárcere, permaneceu três anos preso até ser condenado ao garrote vil e à fogueira, o que foi levado a termo durante auto de fé realizado em 21 de setembro de 1761.
O Juízo da verdadeira causa do terremoto que padeceu a corte de Lisboa continha 31 páginas. Depois de atribuir os elogios de praxe à Majestade de D. João VI, como governante “pio” (Malagrida, 1756, p. 3), o autor entra na matéria, sem delongas. O jesuíta sugere que as causas do terremoto não eram naturais, mas uma forma de castigo aos pecados: “[…] não são Cometas; não são Estrelas; não são vapores, ou exalações, não são Fenômenos, não são contingenciais ou causas naturais; mas são unicamente os nossos intoleráveis pecados” (p. 4).
O tom mais polêmico do opúsculo se situa a partir da página 7, em que o autor contrapõe a “ira Divina desembainhada” ao suposto ateísmo daqueles “políticos”, que atribuem “causa natural” ao terremoto. A seguir, amplia o círculo e estende o questionamento a todos aqueles que professam o catolicismo: “Não sabem estes Católicos que este Mundo não é uma casa sem dono?” (p. 8). Escorado nas escrituras, Malagrida reafirma, nesse e em outros excertos, que o terremoto se deveria à “indignação tão manifesta de Deus” (p. 10).
A primeira cláusula que registra soa como conclusão antecipada em forma de sentença. Engenhosamente, Malagrida estabelece uma analogia entre Lisboa e a cidade de Nínive, descrita no Livro de Jonas: “[…] por mais absolutos, e executivos que pareçam semelhantes decretos, e ameaços de Deus, sempre tem na penitência o seu remédio” (p. 13). A seguir, suporá que essas e outras narrativas bíblicas expressavam a “verdade inegável de tantos avisos e profecias precedentes” (p. 15) e, portanto, seria um ato de heresia negar que se tratava de castigo divino.
Após reiterar a tese de que o terremoto teria sido uma reação de Deus, como forma de castigar os abusos mundanos dos lisboetas, o padre enumera os costumes que considera prováveis causas: “Os teatros, as músicas, as danças mais imodestas, as comédias as mais obscenas, os divertimentos” (p. 23) a reunir aglomeração de gentes, em contraste com as igrejas, vazias.
Na sentença que condenou o padre ao garrote vil e à fogueira, retoma-se o argumento de que Malagrida teria sobreposto a autoridade da religião à do Rei – outro pretexto oportuno a embasar a decisão do Santo Ofício, comungada com a ordem do rei, firmada em Edital da Real Mesa Censória no dia 30 de abril de 1772:
“[…] querendo Eu apartar dos olhos de meus fiéis Vassalos, um papel que foi julgado infame, malicioso, temerário e herético; tendente a promover, e dilatar sem limites o sedicioso, e reprovado Fanatismo; e os temporais, ambiciosos, e perversos fins da proscrita Sociedade Jesuítica” (1772, p. 3).
A maneira como interpretamos os terremotos hoje difere drasticamente dos comentários do século XVIII. A litosfera (crosta terrestre e parte do manto superior), quando observada com o auxílio de um sistema de navegação via satélite, revela um conjunto de fraturas que permitem delimitar as extremidades das placas tectônicas. O epicentro das atividades sísmicas e vulcânicas ocorrem nestas zonas de atrito.
A despeito da falta de consenso quanto à localização do epicentro do terremoto que arruinou a capital portuguesa em 1755, os letrados que escreveram sobre o assunto ao longo do século XVIII não conheciam a tectônica de placas (plate tectonics), teoria inventada pelo geofísico canadense John Tuzo Wilson na década de 1960, tampouco dispunham da escala Richter, desenvolvida pelos sismólogos Charles Francis Richter e Beno Gutenberg em 1935 no California Institute of Technology. Ainda assim, a tomar pelos relatos e considerando os estragos decorrentes da tragédia, estima-se que o abalo ultrapassou 8 graus de magnitude, índice alarmante em uma escala cujo limite é 10.
No final de 1755, Bento Morganti (1756) escreveu uma carta explicando os efeitos naturais do terremoto de Lisboa. A princípio, o autor efetuou a captatio benevolentiae quando associou o trágico desfecho do terremoto e a mão justiceira da Providência. Os “estranhos efeitos” do sismo, portanto, provinham da atuação misteriosa de Deus, que recorria a ferramentas (causas segundas) capazes de escapar ao entendimento humano.
O conteúdo da epístola, distribuído ao longo de 14 páginas, divide-se em duas partes: na primeira, o autor descreve o sismo e a maneira como ele se manifestou na capital portuguesa; na segunda parte, ele se volta para as antigas teorias sobre as causas do terremoto e formula suas conclusões. Embora acreditasse na existência de um fogo subterrâneo, incessantemente fustigado pelo éter e alimentado pelo ar, Morganti não deixa de associá-los à ação divina. O caráter destrutivo do sismo, proporcional à ira de Deus, seria uma resposta aos delitos, aos pecados dos portugueses.
Miguel Tibério Pedegache (1756), em seu relato sobre o sismo, afirmou que matérias inflamáveis explodiam sob a crosta terrestre e produziam tremores. No início de sua relação, o autor descreveu com pormenores o cataclisma de 1755: especificou o momento do primeiro abalo sísmico, descreveu o clima, discriminou a temperatura e a pressão atmosférica, precisou a duração de cada tremor e o intervalo entre eles e adotou recursos para amplificar as consequências do terremoto quando, por exemplo, afirmou que tudo estava prestes a retornar “ao antigo caos”, caracterizado pela desordem, pela ausência de forma.
Em outro momento, recorreu à comparação para explicar aos leitores o caráter dos ruídos que antecediam os tremores, similares ao “estrondo dos trovões” ou “ao eco de uma peça de artilharia disparada em um subterrâneo”.
Não bastasse o suplício inicial, os mares foram arremessados contra a capital portuguesa. A descrição das ondas reforça o argumento anterior sobre o retorno à situação caótica, caracterizada por uma massa informe aquosa. Tornado um “cemitério de cadáveres”, o Tejo acabou sendo convertido em um locus horrendus.
O sismo de 1755 não causou impressão somente em Gabriel Malagrida, Morganti e Pedegache, mas também em filósofos como Kant, Voltaire e Rousseau. Seu potencial destrutivo abalou convicções e suscitou densa reflexão. O filósofo de Königsberg, por exemplo, afirmou que os homens deveriam desenvolver mecanismos capazes de minimizar os efeitos dos tremores, pois eles voltariam a acontecer. Além disso, ele assegurou que os terremotos traziam benefícios como o surgimento de fontes termais, a renovação dos nutrientes minerais dos solos e a manutenção do equilíbrio térmico da Terra.
Ao recomendar prudência, Kant indica que Deus e a natureza não deveriam ser responsabilizados pelas consequências deste fenômeno, mas sim o homem, que deixava de adaptar-se à natureza para tentar acomodá-la aos seus caprichos (Santos, 2016).
Em 1756, o oratoriano Antonio Pereira descreveu o terremoto como sendo o “sucesso mais feio e horrível” testemunhado pelos portugueses. Susan Neiman (2003), em estudo recente, concebeu este sismo como a primeira catástrofe moderna, com poder destrutivo equiparável ao de Auschwitz. Não por acaso, tornou-se corrente a hipótese de que este seria um ponto de inflexão na história humana.
Filomena Amador (2007), por sua vez, afirmou que o terremoto “foi provavelmente o fenómeno natural que maior impacto e repercussão teve, a níveis científico e filosófico, na história da humanidade”. Apropriadas ou não, as analogias aproximam o horizonte do leitor às experiências dramáticas, atenuando um pouco o hiato espaço-temporal que os separa.
Para saber mais
AMADOR, Filomena. “O terramoto de Lisboa de 1755: colecções de textos do século XVIII”, in História, Ciências, Saúde v.14, n.1. Manguinhos, Rio de Janeiro, 2007.
ANDRADE, Ferreira de. A Vila de Cascais e o terremoto de 1755. 2ª ed. Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1964.
ARQUIVO Nacional Torre do Tombo. “Instituição da Real Mesa Censória”.
BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália. Lisboa, Círculo de Leitores, 1994.
BUTIÑA, Francisco. Pombal y Malagrida: persecución antijesuítica en Portugal. Barcelona, Imprenta de Francisco Rosal y Vancell, 1902.
MALAGRIDA, Gabriel. Juízo da verdadeira causa do terremoto, que padeceu a corte de Lisboa no primeiro de novembro de 1755. Lisboa, Oficina de Manoel Soares, 1756.
MEDEIROS, Thiago Gomes. Entre cartas e escritos: a trajetória do Padre Gabriel Malagrida e o Seminário Jesuíta da Parahyba (Séculos XVII e XVIII). Tese de Doutorado. João Pessoa, UFPB, 2017.
MORGANTI, Bento. Carta de hum amigo para outro, em que se dá succinta noticia dos effeitos do terremoto, succedido em o primeiro de novembro de 1755. Lisboa, Offic. Domingos Rodrigues, 1756.
MURY, Padre Paulo. História de Gabriel Malagrida. Trad. Camilo Castelo Branco. Lisboa, Livraria Editora De Mattos Moreira & Cia, 1785.
NEIMAN, Susan. O mal no pensamento moderno: uma história alternativa da filosofia. Tradução de Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Difel, 2003.
PEDEGACHE, Miguel Tibério. Nova e fiel relação do terremoto que experimentou Lisboa, e todo o Portugal no 1 de novembro de 1755. Lisboa, Officina de Manoel Soares, 1756.
PEREIRA, Antonio. Commentario latino e portuguez sobre o terremoto e incendio de Lisboa. Lisboa, Officina de Miguel Rodrigues, 1756.
SANTOS, Leonel Ribeiro dos. “Pensar a catástrofe, pensar a atualidade: os ensaios de Kant sobre o terremoto de Lisboa”, in Stud. Kantiana, 20, 2016.
[1] Imagem: Autor desconhecido – Jan Kozak Collection: KZ128, Wikimedia Commons, Domínio público.
Como citar este artigo: Jornal da USP. Bastidores do terremoto de Lisboa, 265 anos depois. Texto de Cleber Vinicius do Amaral Felipe e Jean Pierre Chauvin. Saense. https://saense.com.br/2020/06/bastidores-do-terremoto-de-lisboa-265-anos-depois/. Publicado em 19 de junho (2020).