Jornal da USP
14/05/2021
Por Christiane Wagner, professora pesquisadora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP
A questão não é apenas pensar sobre os media, o acesso à internet e as formas pelas quais a imagem é disseminada ou o papel das artes em todas as suas formas como imagem ao alcance de um público crescente e mais diversificado e em seus efeitos culturais. Uma audiência diferenciada pela sua formação e gostos assiste aos canais on-line de cinema, concertos, teatro e, também, visita virtualmente monumentos históricos e acervos de museus de artes, mesmo que parcialmente, sem a experiência estética do momento presencial com a obra original, apenas para lembrar o conceito da aura benjaminiana. No entanto, vale registrar ainda que a maioria está interessada nas experiências imediatas apenas pela informação. A questão também não é sobre a história da imagem em sua evolução técnica, reprodução e o papel ambíguo dos media se favorecem o sistema ou as grandes audiências e as celebridades.
Atualmente, essa questão não tem mais sentido, assim como também não tinha mais para Walter Benjamin ao revisar seu ensaio de 1936, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, última versão publicada em 1939, percebendo que o declínio da aura não ofereceria a “democratização” da arte e da cultura. Em sociedades constituídas pelas diferenças e injustas em sua formação, organização sociopolítica e comportamentos, o próprio sistema democrático é colocado em dúvida. Contudo, a priori, a questão central é saber como tornar viável os valores democráticos por meio das artes. Sem isso, nada é possível ser democratizado, especialmente a arte e a cultura.
Nesse sentido, este texto tem como principal objetivo aproximar o leitor do assunto estética e política, ou seja, a correspondência das imagens da arte com a vida pública no que diz respeito aos ideais de organização de uma cidade, estado ou nação. Portanto, pensar sobre o objeto de reflexão estética – a arte – é pensar sobre a recepção das formas de arte e seus assuntos na contemporaneidade interagindo com o cotidiano social e seus ideais democráticos. O sentido estaria para uma estética social, em que a reflexão sobre as artes está vinculada aos aspectos político-culturais. Assim, entre muitas formas pelas quais a arte se manifesta, a experiência e o efeito de maior percepção global são vistos neste artigo em questão pela arte cinematográfica e, consequentemente, pela imagem em movimento. No entanto, especificamente sobre o assunto política, o foco está na reflexão sobre as artes, nesse caso o cinema, e os efeitos pelos quais possibilitam politização, consciência cidadã em sua diversidade cultural e diferenças.
É nesse ponto que priorizo a análise sobre a obra de Morton Schoolman A Democratic Enlightenment: The Reconciliation Image, Aesthetic Education, Possible Politics (“O esclarecimento democrático: a imagem de reconciliação, educação estética, possível política”), publicada pela Duke University Press, em 2020, que faz uma aproximação entre a política e a estética para o esclarecimento democrático, nesse processo de politização por meio principalmente da arte do cinema, mas não só. Portanto, discutir os valores essenciais da democracia é também entender a complexidade de seu ideal de respeito pelas diferenças. O ideal democrático é o principal desafio a ser superado no combate à violência contra a diferença. Para isso, Schoolman entende que uma das formas está no ideal de reconciliação de identidade e diferença pela “imagem de reconciliação”, por meio da educação estética ao encontro do esclarecimento democrático. Com o propósito de me aprofundar nesse assunto, iniciei uma correspondência com o professor Schoolman para melhor entender a sua obra e a manutenção dos valores democráticos por meio da arte, especificamente o cinema. Os temas principais que pautam as discussões em busca de soluções para uma sociedade mais inclusiva parecem depender essencialmente de um esclarecimento democrático. Para isso, sem dúvida, a educação é essencial. Mas por que uma educação estética? Quais valores primordiais teriam as artes – a imagem em movimento, a cinematografia – para essa educação e esclarecimento?
Recentemente, entre muitas leituras e insights encontrados na extensa bibliografia disponível, a leitura desta obra de Schoolman me possibilitou maior aproximação da relação estética e política. Com a leitura desta obra e a resenha crítica que escrevi para o Visual Studies Journal, Routledge (2020), pude me aproximar melhor dessa discussão com o autor, Morton Schoolman, professor do Departamento de Ciências Políticas do Rockefeller College of Public Affairs & Policy, State University of New York. Schoolman tem suas pesquisas e docência focadas na teoria política e social modernas, incluindo o pensamento político americano, com um interesse particular dentro destes campos na relação entre política e estética. Pois bem, a partir dessa aproximação com a obra de Schoolman e estudos visuais, em seus mais diversos meios, em face da polissemia global, primeiramente foquei no entendimento de uma razão estética e, depois, na sua relação com a política. O fato é que, nessa relação, encontramos motivos na realidade contemporânea com definições objetivas de organização dos elementos visuais, pelos quais o sentido da razão está associado aos aspectos socioculturais, políticos e econômicos e ao progresso técnico e científico. No entanto, a experiência e a significação atribuídas aos diferentes meios de linguagem e comunicação são diversas, principalmente no aspecto visual. Assim, considera-se a evolução da comunicação e das artes desde o Iluminismo europeu, através dos tempos modernos, até a história mais recente para esta análise em imagem visual e a sua relação com os aspectos políticos e socioculturais do passado, no que diz respeito ao contexto atual de uma cultura globalizada que visa aos valores democráticos.
É nesse sentido que se destaca a obra de Morton Schoolman, sobre a qual o interesse foi teorizar a “imagem de reconciliação” como o veículo pedagógico da educação estética em busca de esclarecimento democrático que, por meio de uma releitura das obras de Walt Whitman, Friedrich von Schiller e Theodor Adorno, relaciona o contexto histórico-social ao período no qual estas obras estavam inseridas. Ao interpretar as respectivas obras poéticas de Whitman, Schoolman nos apresenta a qualidade estética visual pela qual nos conduz a uma “reconciliação da imagem” por meio da obra deste poeta norte-americano, que nos remete a uma configuração visual em movimento. Essa visualização, por meio das poesias de Whitman, é significativa independentemente do contexto linguístico, as imagens visuais assumem formas políticas – inclusão, receptividade e imitação das diferenças –, que Schoolman considera imagens inclusivas, receptivas e imitativas.
Além disso, fundamentando-se nas cartas de Schiller sobre a educação estética e na teoria estética de Adorno, Schoolman desenvolve sua própria teoria de “reconciliação da imagem” por meio da “imagem cinematográfica”, da “imagem em movimento”. Esta teoria é construída sobre o desafio de “superar a construção da identidade da diferença como alteridade”. O que é entendido como alteridade é a entidade em contraste com a qual uma identidade é construída. Compreender e aceitar esta alteridade significa reconhecer pessoas e culturas diferentes, mas é também essencial entender a importância do respeito entre diferentes alteridades. Para isso, o autor desenvolve e atualiza em nosso contexto três conceitos essenciais retirados da obra de Schiller. Esses conceitos são o aspecto imitativo da reconciliação pela qual a identidade se contrasta com a “imagem da diferença”, como processo de “democratização”; o conceito de educação estética; e o conceito de “imagem de reconciliação” por meio de uma forma de arte universal, que pode ser contextualizada, segundo Schoolman, em nossos dias, com o cinema, com a imagem em movimento, em busca de um esclarecimento democrático.
As bases da teoria estética e estudos visuais são fundamentais para a compreensão da obra de Morton Schoolman, somadas às teorias críticas e estéticas em ciências políticas e de comunicação. Entender a relação de nossa sociedade, quando o objeto de análise é a imagem visual, requer um estudo que vai muito além dos aspectos culturais da relação arte e sociedade. É justamente a partir de sua interpretação sobre a obra de Adorno, First Bridge: Thinking with Adorno against Adorno (“Primeira ponte: pensando com Adorno contra Adorno”), que se vê a necessidade de uma ênfase em teoria crítica e estética, que abrange, em suas análises, a sociedade moderna, com resultados teóricos que alcançaram muito significado quando questões ideológicas eram discutidas sobre a sociedade capitalista durante o século XX. Entre as teorias estéticas, destaca-se a Teoria Estética, de Theodor W. Adorno, influenciada pelas obras de Kant, Hegel e Marx, alcançando grande representatividade para as reflexões estéticas durante os anos de 1970 até início do século XXI. Entre as quais, as análises de Jürgen Habermas. Para Adorno, na arte moderna, quanto mais elaborados fossem os procedimentos técnicos e materiais utilizados, mais esta arte poderia reverter o sistema de tecnocultura, resistindo ao domínio de uma cultura de massificação, diferenciando-se da arte reproduzida e percebida superficialmente, que pelo autor era denominado pelo termo alemão Kitsch. Reflexões estas fundamentais aos estudos da Indústria Cultural – expressão criada em alemão, Kulturindustrie, por Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, e empregada pela primeira vez em sua obra, Dialética do Esclarecimento (Dialektik der Aufklärung), publicada em 1947. Essa obra trata da produção industrial dos bens culturais que encontraram na América do Norte quando exilados, observando o desenvolvimento dos media, de uma sociedade pós-Segunda Guerra Mundial, pós-industrial e massificada. O termo “cultura industrial” tinha o objetivo de diferenciar a cultura popular da cultura de massa. Os objetivos dessa linha de estudos eram as análises do desenvolvimento industrial como cultura. Horkheimer e Adorno analisaram os dois sentidos da razão: o sentido absoluto em busca da verdade e a faculdade do conhecimento. Nos dois casos, essa razão é ambígua e dialética. Por um lado, liberta o homem de uma condição subserviente, oferecendo o esclarecimento. Por outro, condiciona o homem a uma consciência tecnocrata a serviço do desenvolvimento capitalista e de uma classe dominante. A Segunda Guerra Mundial é o exemplo utilizado por Horkheimer e Adorno para a capacidade autodestrutiva da razão. Horkheimer e Adorno perceberam que a classe dominante de uma cultura democrática ou democratizada estava obedecendo, na realidade, aos imperativos do mercado, beneficiando-se com a difusão dos mitos de uma cultura tradicional burguesa, denominada por esses pensadores como “mistificação das massas”. O poder estaria com aqueles que dominassem a técnica ou com aqueles que dominavam economicamente a sociedade.
A estética adorniana propunha uma forma de denunciar os efeitos negativos de uma racionalidade técnica e científica do desenvolvimento social e econômico de mercado liberal. Portanto, essa condição paradoxal da razão é determinante para compreensão da estética adorniana. Ao lidar com a racionalidade inserida no universo da arte, o objetivo era que esta razão pudesse ser utilizada para realizar uma obra de arte capaz de reverter o sistema. Para tanto, Adorno, na sua Teoria Estética, abordou praticamente as obras de arte já consagradas na literatura, música e pintura ao encontro de uma estética de alto padrão técnico e hermético. Nas artes plásticas, porém, em relação às obras de arte que prevaleceram nos anos de 1960, Adorno apenas faz alusão à sua rejeição aos Happenings, Arte Bruta, Action Painting e Arte Conceitual. Para ele, esse tipo de arte iria ao encontro de uma destruição do sentido próprio de uma obra de arte. Contudo, a autonomia estética na teoria de Adorno se caracteriza pela realização de uma obra hermética em música, literatura e artes. O que, em contrapartida, torna a compreensão dessas obras muito difícil. Contudo, a autonomia de sua estética estava voltada a uma formação, educação (Bildung), em razão do hermetismo que essas obras oferecem e que tanto Adorno defendia em sua teoria. Essas obras chamariam a atenção de um público cada vez maior, pela educação, se fossem compreendidas, formando uma consciência crítica. Mas no sentido geral, a arte para Adorno seguiria o sentido da “desestetização” (Entkunstung), um estado em que a arte deixaria de ser arte, como esclareceu o filósofo francês, especializado em estética e conhecedor da obra de Adorno, Marc Jimenez, Professor Emérito da Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne, onde, durante meus estudos em estética e ciências da arte e uma série de seminários de que participei, discutimos noções sobre a relação da estética franco-alemã. Além, claro, de contar com a orientação deste professor na época para pesquisas que resultaram na minha tese de doutorado sobre análise crítica da imagem contemporânea.
Para entender a obra de Adorno, não basta a ler uma vez (seja no idioma alemão, seja em qualquer tradução), é preciso lê-la e relacioná-la ao contexto artístico em questão, teoria crítica, estética e discuti-la. Quando Adorno redigiu sua Teoria Estética, segundo ele, a arte permaneceria como “promessa de felicidade” ao refletir sobre o fato de que, na sociedade da sua época, a arte não teria importância e que sua existência estaria mesmo ameaçada. Ao tratar de uma racionalidade inserida no universo das artes, o importante era que essa razão estivesse sendo empregada para a realização de uma obra de arte. Essa arte, nesse período, tratava-se de uma arte moderna considerada “obra de arte”, que, segundo Adorno, trata-se de uma obra de arte, justamente por se diferenciar de outros produtos. Adorno afirma que a imitação pela arte moderna da realidade social predominante, de um universo desencantado, exalta a distância entre a aparência artística e a realidade social. Se a obra de arte atende uma causa real com eficácia sobre o público, isso se deve à sua forma excepcional. A arte moderna apresenta um conteúdo de verdade que condicionaria a sociedade à resistência. O sentido da arte moderna para Adorno estaria na negação da realidade social, por isso é que sua teoria é conhecida como estética da negação.
É a partir dessa Teoria Estética de Adorno que Schoolman encontra as provas necessárias para uma “imagem de reconciliação” que Adorno tinha confinado àquela época, com a arte moderna limitada a uma minoria intelectualizada e, que, nos dias atuais, pode eventualmente ser encontrada na cinematografia – a “imagem de reconciliação” na arte moderna e a “imagem de reconciliação” na cinematografia. Artes visuais e cinematografia seriam análogas esteticamente. Assim, descobrindo a “imagem de reconciliação” pelo cinema, Schoolman desenvolve o conceito de razão estética sobre a qual ele estabelece sua teoria para o esclarecimento positivo em The Reconciliation Image in Film as Universal Art Form (“A imagem de reconciliação no filme como forma de arte universal”), exemplificando com análises dos seguintes filmes: The Help (Histórias cruzadas, 2011), dirigido por Tate Taylor, e Gentleman’s Agreement (A luz é para todos, 1947), dirigido por Elia Kazan. Além desses filmes profundamente analisados, Schoolman esclarece que outros filmes, compartilhados entre o público em geral, também mostraram as “imagens de reconciliação” como Pride, Tootsie, Dirty Dancing, Forrest Gump, My Left Foot e The Soloist.
Essa condição paradoxal da razão é determinante para compreensão da estética de Adorno nas análises de Schoolman em relação às considerações desse pensador alemão. É importante perceber em sua estética a reflexão sobre o conceito de mímesis, assim como a influência dos filósofos Immanuel Kant e Georg W. F. Hegel, sobretudo este segundo, para vincular as realizações culturais aos diferentes contextos, em que cada etapa da história se opera por meio de uma nova recomposição, oferecendo um progresso da consciência de liberdade, da afirmação dessa liberdade. Mas não apenas. As obras de pensadores modernos, com destaque para Henri Bergson e o mais contemporâneo como Gilles Deleuze, são essenciais. Entende-se, assim, uma orientação estética na qual a cinematografia apresenta, por meio de seus recursos técnicos, do domínio e do talento do cineasta, um resultado no qual se possa perceber o que representa a nossa realidade de forma universal. Para isso, entende-se que a obra A Democratic Enlightenment pela The Reconciliation Image and Aesthetic Education (O esclarecimento democrático: a imagem de reconciliação, educação estética, possível política) não seria possível por meio de um conteúdo realista, objetivando uma crítica à realidade social objetiva e diretamente com um assunto determinado e pretensão em expressar uma ideologia política, dissimulando uma propaganda intencionada, mas por meio da possibilidade política da imagem cinematográfica ou da imagem em movimento, pela experiência e educação estética. Depois da estética de Adorno, muitos teóricos da arte mantiveram certa distância crítica a respeito da concepção artística, principalmente a contemporânea. Alguns reprovando as posições de Adorno de uma visão negativa daquela realidade, da ideia de que a arte, herdeira da mímesis arcaica, se submetia à instrumentalização da racionalidade que domina o mundo. Alguns pensadores conscientes do limite histórico da teoria de Adorno reveem a problemática da racionalidade estética considerando a especificidade da arte atual. Entre eles, cite-se Morton Schoolman ao demonstrar que o filme resiste ao Entkunstung, ou seja, não perde seu valor como arte e se torna o avatar positivo da razão estética adorniana em nossos dias.
[1] Imagem de Stefan Keller por Pixabay.
Como citar este artigo: Jornal da USP. Artes e democracia em questão. Texto de Christiane Wagner. Saense. https://saense.com.br/2021/05/artes-e-democracia-em-questao/. Publicado em 14 de maio (2021).