Jornal da USP
10/06/2020

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Por Clotilde Perez, professora titular de Semiótica e Publicidade da ECA-USP

Importante lembrar que uma empresa de mídia, guardadas as diferentes possibilidades, reúne organizações de geração/produção, comercialização e transmissão de conteúdos de natureza jornalística e de entretenimento. A paisagem midiática brasileira apresenta uma configuração bastante singular, com a presença de grupos de mídia verticalizados com empresas produzindo conteúdos que serão veiculados na TV aberta e fechada, emissoras de rádio, jornais impressos, revistas, plataformas digitais, mídias exteriores e outros, em um exercício de articulação e transbordamento midiáticos, além das empresas autônomas não integradas em grupos e que compõem a cena como produtoras de natureza diversa, retransmissoras, empresas de infraestrutura, empresas de dados, agências etc.

Diferentemente dos jornais, revistas e plataformas digitais que precisam investir para constituir suas capacidades criadoras e criativas, os canais de transmissão de TV e radiodifusão são uma concessão do Estado, portanto, submetidos a regras de interesse público, inclusive devem atender ao imperativo de serem controlados por maioria de acionistas nacionais. Assim, precisam desenvolver a capacidade produtiva, mas também obter a autorização para o uso das frequências eletromagnéticas.

Ser uma concessão significa que o Estado dá licença e autoriza um terceiro para atuar, mediante ditames legais. E por que isso acontece? TVs e rádios (mas também a telefonia móvel, a comunicação por satélite etc.) operam por meio de ondas eletromagnéticas que estão disponíveis, mas são limitadas, por isso são um bem público. O espectro eletromagnético não pode ser usado de maneira desordenada com o risco de se gerar o caos, por isso precisa ser administrado como bem público, ainda que seja imaterial, ou seja, como propriedade de todo ser humano (atendendo ao direito à comunicação presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos), e, consequentemente, propriedade daqueles que o representam em cada nação soberana.

Detentoras desta capacidade (construída e/ou recebida em concessão) de levar mensagens às pessoas, as empresas de mídia expressam a importante função de mediadoras de informações, acontecimentos, relatos, refletindo a realidade na medida em que desempenham uma ação especular, mas simultaneamente sua função é também simbólica, uma vez que representam essa mesma realidade a partir das escolhas empreendidas e dos modos de representá-la. Assim, a realidade e o simbólico se encapsulam. Como produtoras de conteúdo assumem uma terceira função, agora no plano do imaginário, característico das ficções (mas não apenas) onde a produção de sentido é cuidadosamente planejada na intencionalidade de autores, diretores, produtores e atores, servindo ao entretenimento, ao conhecimento, ao nosso deleite sensível, estimulando nossas capacidades imaginativas e sonhadoras. O áudio e, ainda de forma mais potente, o audiovisual em movimento são uma potência comunicacional por nos banhar com estímulos multissensoriais.

Nos processos comunicacionais engendrados nas e pelas mídias, cada um dos atores é simultaneamente também espectador, na medida em que a visibilidade do desempenho dos papéis é inseparável do espetáculo que os atores oferecem de si, mais evidente ainda nos meios audiovisuais. As mídias ocupando um papel emblemático, de produção e reprodução do simbólico no contexto social, além de sua característica expressiva da realidade e do favorecimento imaginativo principalmente nas ficções, são assim organizações “semiotecnológicas” que integram as dinâmicas sociais, políticas, econômicas e culturais, por meio de seus valores mais profundos expressos na seleção e edição das mensagens, suas práticas internas, suas decisões que determinam o que deve se tornar público e visível ou não.

As mídias não apenas representam, mas também constroem a realidade e favorecem o imaginário. Portanto, a seleção das informações que vão se transformar em notícias não está inscrita apenas nos códigos de ética e práticas profissionais, mas também pelas normas editoriais de cada organização midiática, com isso cresce ainda mais a responsabilidade. Por isso, os textos, as imagens fotográficas, os infográficos, os signos sonoros, as reportagens, o tempo de duração ou o tamanho da página e qualquer outro conteúdo e suas expressões, ou seja, as representações da realidade que são vinculadas nas mídias, se constituem em discursos, pois trazem as marcas indeléveis das condições em que foram produzidos gerando efeitos de sentido intencionais ou não (o que não diminui a responsabilidade).

Assim, tudo que é comunicado, não apenas no jornalismo, mas em todos os formatos e produtos, incluindo a publicidade veiculada ou inserida nos conteúdos visuais, áudio e audiovisuais, deve ter como princípio o benefício social. O que em uma linguagem corporativa fica explícito no conceito de responsabilidade social. Ou seja, toda empresa de mídia deve ter responsabilidade e ser responsável pelas suas produções e veiculações. E esse princípio da responsabilidade social é inegociável, primeiro porque o direito à informação é um direito constitucional, portanto, de todos. Segundo porque, ao que se refere a TV e radiodifusão, são mídias que operam um bem público (as ondas eletromagnéticas), portanto a responsabilidade social é redobrada. Terceiro porque não há fenômeno midiático que não seja produtor de sentidos e é aqui que se encontra a “cereja do bolo” encimando as mil folhas dos argumentos que sustentam que tudo em uma empresa de mídia é responsabilidade social.

Responsabilidade é um dever e essa dimensão em uma empresa de mídia reveste-se de maior relevância decorrente de sua natureza produtora de sentidos, portanto, de sua irrefutável natureza ideológica. Desde a angulação da câmera, passando pela nitidez do primeiro plano de uma fotografia, uma imagem em preto e branco, as escolhas das palavras, o tamanho, o tipo e a cor da letra, o tom de voz, a trilha sonora, a roupa, a maquiagem e a expressão da jornalista, quem é a jornalista, o cenário, tudo, absolutamente tudo, produz sentido.

Responsabilidade pressupõe condições morais para assumir um compromisso e, nesse caso, um compromisso social, com todos os cidadãos, um compromisso firme, transversal e reafirmado cotidianamente com a sociedade, representada pelas relações mais próximas, como os funcionários, fornecedores e parceiros, mas também com cada cidadão. Nas estruturas organizacionais das empresas de mídia não vejo saída a não ser criar ou empoderar áreas destinadas a refletir e a guiar a todos nos princípios da responsabilidade social, como uma ação indutora mesmo.

Quando naturalmente não acontece ou demora muito para acontecer é preciso indução, como nas políticas de cotas – quando atingem seus propósitos, perdem o sentido e deixam de existir. É possível que décadas depois não sejam mais necessárias áreas, diretorias, vice-presidências, gerências de responsabilidade social, mas, por enquanto, é urgente tê-las e quanto mais destacada for a posição, mais significativa será sua atuação. Porque só assim as empresas de mídia, seus executivos, gestores e cada um dos colaboradores poderão se manter conectados cognitiva e sensivelmente com os cidadãos e suas demandas prementes, o que no caso brasileiro é ainda mais necessário dadas as precárias condições de milhões de cidadãos. E essa indução é tão fundamental porque comum é o distanciamento decorrente do êxito, da visibilidade e do poder, próprios das empresas de mídia. O poder tem a nefasta característica de nos desumanizar, e “alguém” precisa cumprir a função de nos lembrar da nossa condição humana e do nosso compromisso público.

A pergunta-mantra que todo executivo de mídia deve se fazer obsessivamente é: o que eu estou fazendo está pautado na responsabilidade que tenho com a sociedade? E se quiser refinar suas reflexões, seguem-se outras: esta ação é a melhor ação visando ao bem-estar social prioritariamente? Os efeitos de sentido que tenho produzido a partir das minhas decisões são afetivamente os melhores para o País e para os brasileiros?

Perguntas são sempre difíceis porque perturbam, e pautar nossas ações em favor da coletividade é o melhor, mas não é simples, principalmente porque as lógicas capitalistas favorecem o individual e o privado. Mas quem tem as melhores condições para fazer perguntas e buscar caminhos? Sem exageros utópicos. Quem tem a responsabilidade moral por ser espelho, construtor social e fomentador dos imaginários coletivos? Resposta: quem tem informação, inteligência e criatividade, e essas condições são abundantes nas empresas de mídia porque esses são valores dos profissionais e de seus fazeres. E coerência é fundamental; as empresas de mídia não podem seguir emitindo sinais contrários, o que significa que a responsabilidade social deve partir do próprio negócio, tendo as relações com seus profissionais como princípio sagrado e assim espraiar-se ao social em tudo que faz.

Na empresa de mídia tudo é responsabilidade social e é só com essa clareza de propósitos que essas empresas cumprirão com sua missão primordial de ser espelho da realidade, representá-la, portanto, assumir sua função simbólica, mas também de proporcionar a imersão sensível tão necessária como estímulo à nossa capacidade criativa e à nossa estabilidade emocional.

[1] Imagem de mohamed Hassan por Pixabay.

Como citar este artigo: Jornal da USP. Em uma empresa de mídia tudo é responsabilidade social.  Texto de Clotilde Perez. Saense. https://saense.com.br/2020/06/em-uma-empresa-de-midia-tudo-e-responsabilidade-social/. Publicado em 10 de junho (2020).

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