Marcus Eugênio Oliveira Lima
28/06/2020

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“Flutuavam números na sua memória, e dizia a si próprio que umas três dezenas de pestes que a história conheceu tinham feito perto de cem milhões de mortos. Mas o que são cem milhões de mortos? Quando se faz a guerra, já é muito saber o que é um morto. E já que um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação. O médico lembrava da peste de Constantinopla, que, segundo Procópio, tinha feito dez mil vítimas em um só dia. Dez mil mortos são cinco vezes o público de um grande cinema. Aí está o que se deveria fazer. Juntam-se as pessoas à saída de cinco cinemas para conduzi-las a uma praça da cidade e fazê-las morrer aos montes para se compreender alguma coisa. Ao menos, poder-se-iam colocar alguns rostos conhecidos nesse amontoado anônimo.” (Albert Camus, “A peste”, 1947, p. 24) [1]

Imagine que você chega em casa liga a TV numa das duas seguintes notícias: (i) “20 mortos, 136 feridos, numa explosão em Beirute no Líbano.” ou (ii) “Três adolescentes de classe média são encontrados amarrados dentro de um matagal em xxx” (a cidade em que você, caro(a) leitor(a), mora). A qual notícia você dedicaria mais atenção? Se elas fossem publicadas num jornal impresso, qual delas você acha que teria mais destaque na edição e qual seria mais lida?

Psicólogos sociais analisaram o espaço que pessoas colocadas na função de editores de jornais teriam dado a notícias como estas e verificaram que a notícia “local” recebia mais espaço na edição e causava mais impacto que a notícia “remota” [2].

Por que será? Num caso morreram 20 pessoas, no outro se salvaram três!

Vamos imaginar algo mais próximo, infelizmente muito mais PRÓXIMO. No dia 17 de março de 2020, em São Paulo, faleceu a primeira vítima da covid-19 no Brasil, um homem de 62 anos. No dia de 17 de março, foi publicado o decreto de emergência em São Paulo. Mas um relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) do dia 16 de março já apontava dados estarrecedores: 167.515 casos de covid-19 confirmadas no mundo, sendo 86.438 fora da China; 6.606 pessoas mortas; 150 países ou territórios/áreas afetados…

Será que só fechamos a porta depois de roubados? Ou simplesmente a “ficha só cai” quando a “ligação” é conosco? Ou, como no extrato do livro “A peste” de Camus, precisaremos de rostos conhecidos dentre os mortos?

Todas essas questões se enquadram num único e amplo tema: qual o impacto (social e psicológico) que os acontecimentos têm sobre nós.

Em 1981, Bibb Latané, um psicólogo social norte-americano, propôs que estamos sempre expostos a influências como se estivéssemos num “campo social de forças” [3]. Forças que determinam o quê, como, quando, onde e com que intensidade seremos afetados. Latané utiliza uma analogia com os campos físicos de força que governam a transmissão de luz, som e gravidade [4]. Assim, quando outras pessoas são a fonte de influência ou impacto e o indivíduo é o alvo, o impacto sofrido por ser explicado por uma lei na qual a intensidade das forças sociais é igual a f(SIN), ou seja, uma função da multiplicação da força (S) de cada fonte de impacto, representada pela saliência, poder, intensidade e importância de cada fonte; pela immediacy (I), traduzida como “proximidade imediata”, ou seja, distância temporal/espacial ou psicológica de cada fonte de impacto, e pelo número (N) de fontes de impacto (como ilustrado na Fig. 1).

Fig. 1: Divisão do impacto social (retirada de Latané, 1981, p. 349) [4]

A Teoria do Impacto Social (SIT) de Latané nos ajuda a entender por que a “ficha” muitas vezes “demora a cair”. Se considerarmos a noção de “immediacy”, vemos que a percepção de proximidade, seja ela emocional, temporal ou espacial com a fonte de ameaça ou de influência colabora para determinar o efeito que essa terá sobre nós. Stanley Milgram (1974) já havia demonstrado, nos seus estudos sobre obediência à autoridade, que sete situações de proximidade imediata surtiam efeitos diversos na força ou impacto da mensagem recebida. Apenas 2,5% dos que não receberam ordem da autoridade obedeciam à instrução de punir um “aprendiz”, quando as ordens eram dadas pela autoridade por telefone esse percentual crescia para 20%. Em relação à proximidade com a vítima, 40% cumpriam as ordens quando viam, mas não ouviam os gritos da vítima e 100%, ou seja, todos os participantes do estudo, cumpriam as ordens de tortura quando apenas sabiam que existia uma vítima, mas nem a viam nem ouviam.

Talvez seja mais fácil entender esse efeito da “proximidade imediata” se imaginarmos uma situação de guerra, na qual devamos avaliar o que é mais fácil, jogar uma bomba, a uma altura de 5 mil metros, sobre uma cidade de 100 mil habitantes ou puxar um gatilho contra alguém numa situação face-a-face?

Acho que agora podemos transpor essas noções da Teoria do Impacto Social de Bibb Latané para entender por que demoramos (enquanto indivíduos e enquanto País) a reagir ao coronavírus e à pandemia da covid-19.

A sabedoria popular tem um ditado que nos ajuda a trazer nosso tema para a terra mais firme: “O homem vive na desgraça alheia e morre na sua”. Num cenário mais amplo, de ações sociais e acontecimentos coletivos, vimos que a doença foi identificada pela primeira vez em Wuhan, na China, em 1 de dezembro de 2019, sendo o primeiro caso reportado em 31 de dezembro daquele ano. Um mês depois, foi confirmado que a pandemia tinha se espalhado para a Itália. Em 24 de fevereiro de 2020, Centros de Controle e Prevenção de Doenças confirmaram vários casos de coronavírus nos Estados Unidos [5]. Apenas em meados de março, o Brasil começa a tomar medidas de controle da pandemia.

Na descrição dos acontecimentos históricos acima podemos considerar que, quando a fonte da propagação da influência foram a Europa e os Estados Unidos, houve mais impacto no Brasil do que quando foi a China; este seria o S da força na nossa equação do impacto da covid-19 sobre o Brasil. Quando morreu um cidadão brasileiro (paulista e de classe média), sentimos os efeitos mais imediatos, nosso I da immediacy da pandemia e, considerando o crescimento de infectados e vítimas fatais (em outros países), chegamos ao N do número de casos e a ficha finalmente caiu para as autoridades (ainda que não todas) e as medidas sanitárias começaram a ser tomadas em todo o pais.

Essa propagação das “ondas” da influência social da covid-19 tem um diapasão específico num cenário mais psicológico de impactos nas ações individuais, mas segue, imaginamos, a mesma lógica. Vamos a ela: o S poderia ser a força específica da influência sobre você das autoridades nacionais, estaduais e municipais, considerando que elas não tivessem a mesma opinião/discurso sobre a pandemia; o I tem a ver com questões de círculos concêntricos de distância física, por exemplo quando morre um concidadão seu, um morador da sua rua, um vizinho, um amigo, um parente; e o N novamente, seriam as estatísticas sobre infecção e óbitos.

Usando essas duas lógicas complementares, talvez possamos entender porque, de forma geral, o impacto sentido pela covid-19 para um morador de São Paulo (Estado com mais casos) é maior do que para um morador de Tocantins (estado com o menor número de casos); ou ainda, porque o Sr. Y, que perdeu a esposa para a covid-19, se sente mais impactado pela doença que o Sr. X, que ainda não perdeu ninguém próximo. Nos dois casos, podemos supor que as crenças sobre a importância de medidas restritivas de circulação e os comportamentos de prevenção serão influenciados pela percepção de impacto.

A teoria do impacto social pode, portanto, ser um bom instrumento para entendermos vários aspectos gerais da nossa vida e outros mais específicos. Ainda que ela tenha, como aliás toda teoria, uma série de limitações [6], pode também ser ampliada para modelos de simulação computacional [7], nos ajudando a entender fenômenos como a difusão de responsabilidade, comunicação e persuasão e os comportamentos políticos, dentre outros. Com certeza, um bom campo para novas e boas leituras psicossociais!

[1] Disponível em http://lelivros.love/book/download-a-peste-albert-camus-em-e-pub-mobi-e-pdf/.

[2] Brown, Roger (1981). Social Psychology. 2ª ed. London: The Free Press.

[3] Latane, B & Wolf, S. (1981). The Social Impact of Majorities and Minorities. Psychological Review, 88(5), 438-453.

[4] Latane, B (1981). The Psychology of Social Impact. American Psychologist, 36(4), 343-356.

[5] Fonte https://pt.wikipedia.org/wiki/Pandemia_de_covid-19.

[6] Mullen, B. (1985). Strength and Immediacy of Sources: A Meta-Analytic Evaluation of the Forgotten Elements of Social Impact Theory. Journal of Personality and Social Psychology, 48(6), 1458-1466.

[7] Seltzer, N. A., Johnson., A. A., & Amira, K. A. (2013). Revisiting Dynamic Social Impact Theory: Extensions and Applications for Political Science. Int J Polit Cult Soc, 26, 349–367.

[8] Crédito da imagem: karla mora, Flickr, Domínio público.

Como citar este artigo: Marcus Eugênio Oliveira Lima. Por que às vezes a ficha demora tanto a cair? O caso da covid-19 no Brasil. Saense. https://saense.com.br/2020/06/por-que-as-vezes-a-ficha-demora-tanto-a-cair-o-caso-da-covid-19-no-brasil/. Publicado em 28 de junho (2020).

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