Marcus Eugênio Oliveira Lima
12/07/2020

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Em 1999, o psicólogo social Gustav Jahoda publicou o livro “Imagens dos selvagens: Raízes antigas do preconceito moderno na cultura ocidental”. O autor, descrevendo os primeiros contatos dos europeus com os indígenas, afirma: “Os europeus, tomando sua própria aparência física e modo de vida como critério de completa humanidade, encontraram os selvagens. A diferente pigmentação, a nudez, o tipo de carne que consumiam (frequentemente incluindo carne humana) e outras características negativas atribuídas aos selvagens, foram tomadas como sinônimo da sua animalidade” (p. 7) [1].

Quase 500 anos depois dos “primeiros encontros”, continuamos reproduzindo as relações “colonizador/civilizado versus colonizado/selvagem”. No palco, de um lado, o novo colonizador, com seus traços físicos e estilo cultural europeizados, do outro, o antigo colonizado, com traços indígenas/africanos/miscigenados. A peça se desenrola em ambientes de exploração com rígida demarcação da estratificação social, cada um em suas posições de meio século atrás. O roteiro conta histórias velhas de desumanização (coisificação, animalização, demonização, deslegitimação do outro). O público (nós), geralmente bem instalado, assiste impassível, mas, se os holofotes se voltam na nossa direção, nos indignamos. Vociferamos, indignados, nos nossos grupos ou redes sociais, contra a inferiorização do outro enquanto indivíduo-de-um-grupo (racismo), mas não somos capazes de largar a “coleira” que mantém nossa posição de privilégio.

Dois episódios recentes no nosso país deixam mais evidente o que estamos tentando expressar. No dia 28 de abril de 2020, o influenciador digital Luan Tavares postou um vídeo no qual filmava a empregada doméstica (diarista) “Ana” limpando seu banheiro. Durante toda a cena, a senhora aparece agachada, próxima ao vaso sanitário, enquanto Luan reclama do preço, da “esperteza dela” e de como gasta materiais de limpeza. Trata-se de uma cena comum, na qual só o “colonizador” fala. O “colonizado”, entre um agachamento e outro, murmura defesas, quase inaudíveis, em relação ao fato de estar supostamente explorando seu explorador [2].

Sete dias depois, em 05 de maio de 2020, o Governo do Estado do Pará decretou lockdown, fechando um conjunto amplo de atividades face à pandemia da COVID-19. Apenas serviços essenciais permaneceram ativos, dentre eles o serviço doméstico. A consequência da medida era a de expor cerca de 200 mil trabalhadores domésticos do Estado ao corona vírus, numa tentativa de reeditar o que aconteceu com dona Cleonice, primeira vítima fatal da COVID no Rio de Janeiro, que era empregada doméstica e foi contaminada pela sua patroa, que havia voltado da Itália. A justificativa do Prefeito de Belém e do Governador do Pará para manter no decreto o trabalho doméstico como serviço essencial foi a de que “uma médica ou um médico, por exemplo, precisa de alguém que ajude em casa” [3]. O decreto foi revisto dois dias depois, após a polêmica causada.

Nos dois casos, em muitos outros, diários, constantes e não tão “emblemáticos”, pode-se dizer que assistimos a um embate entre, de um lado, noções cristalizadas de essência humana e, de outro, pressões por aparências de civilidade. Esse embate é a marca do racismo moderno e de todas as formas de desumanização do outro. Mas, o que é a desumanização e por que ela acontece com tanta frequência?

A crença de que existe uma “essência humana” é o fundamento de todas as formas de desumanização. Há, nessa crença, dois fundamentos principais, sobre os quais é importante refletir: 1) Que características definem a tal “essência humana”? 2) Quem são os “humanos” que definem e são definidos por essa essência? Trata-se de uma discussão muito importante, amparada por muita pesquisa em psicologia social, que, infelizmente, não teremos como detalhar aqui. Para ajudar na sua reflexão sobre a essência humana, vamos criar um cenário, jogando com as noções de protótipos e exemplares. Rapidamente: imagine um ser humano! Pode ter surgido na sua mente um “tipo ideal”, um protótipo, composto por características físicas, psicológicas, sociais, econômicas, regionais, linguísticas.  Imagine agora um exemplar, uma pessoa real, materializada, o ser humano que melhor integra os traços do seu protótipo. Como é: ele-ela? negro-branco? patrão-empregado? rural-urbano? muçulmano-cristão? Será que todos os grupos sociais ou formas de ser tiveram a mesma chance (saliência cognitiva) de entrar no seu protótipo de ser humano? Ou será que as “portas do paraíso” são bem vigiadas e nem todos tiveram como comprar os ingressos?

Vários estudos demonstram que as características mais usualmente atribuídas como “tipicamente humanas” são os valores, a cultura, a linguagem, a inteligência e a capacidade de expressar sentimentos. Há, ainda, as possibilidades desumanizadoras da deslegitimação e da despersonalização. A primeira ocorre pela descrição do outro através de características extremamente negativas, inaceitáveis em uma dada sociedade. Já na despersonalização, o indivíduo deixa de ser uma pessoa, ao nível das percepções sociais, passa a ser um membro de um grupo, ou, pior, um registro difuso, uma “impessoa”, como descrito por George Orwell no livro “1984”: “A única pista real estava nas palavras ‘refs unpersons’, que indicavam que Withers já estava morto. (…). Withers, no entanto, já era um unperson. Ele não existia: ele nunca existiu.” (p. 58) [4]. A título de ilustração, abrimos mais de dez reportagens para encontrar o nome de Cleonice, a primeira vítima fatal da COVID no Rio de Janeiro. As reportagens apenas a referiam como “empregada doméstica”. Em nenhuma encontramos seu sobrenome.

Na construção de imagens ou representações (mentais e sociais) sobre os outros, pode-se supor que usamos dois tipos de materiais: características da “natureza humana” (NH), tidas como condição necessária para um ente ser definido como humano, tais como emocionalidade, vitalidade e calor e características unicamente humanas (UH), condições suficientes para distinguir os humanos de outros animais, tais como refinamento cultural, civilidade, cognição superior [5]. Essa divisão é uma proposta de Nick Haslam, para quem a desumanização ocorre tanto nas relações interpessoais, quanto nas intergrupais, em contextos de violência mais simbólica, como no caso do vídeo sobre “Ana”, e em contextos de violência mais aberta e física, como nas guerras e extermínios.

J-P Leyens, outro psicólogo social, nos conta que a desumanização cumpre funções de justificação/legitimação de comportamentos negativos em relação a grupos externos. Haveria dois, digamos, níveis de desumanização, um mais sutil, chamado de infra-humanização, no qual a denegação da humanidade do outro seria mais relativa e sutil, presente em descrições como aquelas que supõem que nosso grupo é mais capaz de expressar sentimentos complexos (e.g., empatia, amor, nostalgia, arrependimento, etc.) que os outros são; e um nível absoluto de desumanização, no qual toda a hominização é excluída, a exemplo da comparação dos negros a macacos e dos judeus a ratos (animalização); das mulheres, das empregadas domésticas e dos trabalhadores, de forma geral, a coisas ou objetos de uso pessoal (coisificação/objetificação); dos homossexuais a pecadores demoníacos (exclusão moral e demonização), dentre outras.

Em todas as suas formas, no entanto, a desumanização possibilita o “desengajamento moral”, a não empatia com o outro. Afinal só conseguimos, se conseguimos, empatizar com outros seres humanos iguais a nós. Tal desengajamento permite a violência contra e a indiferença face ao outro vítima de exploração, domínio, sofrimento, exclusão, extermínio [6]. Algo que se expressa em frases emblemáticas como: “direitos humanos só para seres humanos direitos”. Ou seja, há alguns, por supostas razões de inclusão moral, mais humanos, e portanto, mais merecedores de direitos, que outros.

Algumas gotas de psicologia social foram trazidas para tentarmos entender comportamentos individuais e práticas sociais que inferiorizam o outro de uma forma desumanizadora. O tema envolve muitos processos e mecanismos, uns mais sutis ou velados, outros mais flagrantes ou abertos. Os contextos sociais, as normas de permissibilidade e os interesses envolvidos nas relações de poder determinarão as formas de expressão da desumanização. Trata-se de um fenômeno amplo, complexo e com muitas ramificações, digamos que o racismo e muitas formas de preconceito são parte desse fenômeno. Quando olhamos com cuidado, de forma específica para as explicações dadas por Luan Tavares e para a preocupação do governo do Pará em rever o decreto, ou, de forma mais geral, para o modo como as empregadas domésticas e muitas outras minorias sociais são tratadas no Brasil, percebemos que as crenças hierárquicas sobre uma essência humana, se associam com as preocupações, individuais e coletivas, de manter as aparências de civilidade, sem, no entanto, soltar o cabresto da dominação. Novas e boas leituras psicossociais podem ser feitas nos textos indicados.

[1] Jahoda, G. (1999) Images of savages: ancient roots of modern prejudice in Western culture. London: Routledge.

[2] https://www.youtube.com/watch?v=Hy6IKLmxwPA.

[3] https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2020/05/07/lockdown-no-para-tem-servico-domestico-como-essencial-contrariando-governo-federal-e-mpt.ghtml.

[4] Orwell, George. (1949). 1984. Londres: Secker and Warburg, 1a. ed.

[5] Haslam, N. (2006). Dehumanization: An Integrative Review. Personality and Social Psychology Review, 10 (3), 252-264.

[6] Leyens, J.-P. (2014). Are we all human? Advances in understanding humanness and dehumanization”. In P. G. Bain, J. Vaes, & J.-P. Leyens (Eds.), Humanness and dehumanization Londres: Psychology Press.

[7] Imagem de pascalhelmer por Pixabay.

Como citar este artigo: Marcus Eugênio Oliveira Lima. A essência humana e as aparências de civilidade. Saense. https://saense.com.br/2020/07/a-essencia-humana-e-as-aparencias-de-civilidade/. Publicado em 12 de julho (2020).

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