UFRGS
20/08/2020

(Foto: Flávio Dutra)

Um grupo multidisciplinar da UFRGS está trabalhando na avaliação de métodos para descontaminar equipamentos de proteção individual (EPIs) usados por profissionais da saúde. A intenção é garantir uma desinfecção segura de EPIs, como máscaras e óculos, usando luz ultravioleta do tipo C (UVC) e o gás ozônio, o que poderia ser feito nos próprios hospitais e aumentaria a vida útil desses equipamentos. Isso significaria menos gastos às estruturas hospitalares e maior disponibilidade de EPIs — que têm atualmente uma alta demanda no mundo todo — reforçando a capacidade de resposta à pandemia de covid-19. Outra proposta do estudo é estabelecer um protocolo acerca de tecnologias para descontaminação, minimizando possíveis riscos à saúde dos profissionais e podendo servir como base para que mais métodos de desinfecção sejam desenvolvidos futuramente, inclusive com outras tecnologias. O projeto foi um dos selecionados no Edital emergencial ciência e tecnologia no combate à covid-19, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs).

De acordo com os pesquisadores, a luz UVC e o gás ozônio foram escolhidos como descontaminantes por deixarem pouco ou nenhum resíduo e terem uma boa disponibilidade no mercado. Um dos objetivos dos cientistas é que, ao final do estudo, os resultados e os protocolos utilizados sejam de domínio público e contribuam com o conhecimento científico sobre o assunto. Atualmente, apesar do UVC e do gás ozônio serem propostos extensivamente como métodos de desinfecção, existem poucas informações sobre as condições de uso dessas metodologias e sobre a forma de validação dos procedimentos realizados.

A equipe é coordenada por dez professores da UFRGS de diferentes áreas, como Medicina, Física, Engenharia Química e Medicina Veterinária, e também conta com a parceria de hospitais e empresas. De acordo com o professor da Escola de Engenharia Altair Sória Pereira, um dos coordenadores do estudo, “é muito importante que se desenvolva uma metodologia efetiva, que garanta que aquele procedimento realmente proporcione a desinfecção adequada do equipamento. Esse é o foco central do projeto”. O professor também relata que a ideia é que os testes que estão sendo realizados estejam o mais próximo possível da prática de aplicação nos hospitais, e, por isso, a equipe trabalha de maneira multidisciplinar. 

É muito importante que se desenvolva uma metodologia efetiva, que garanta que aquele procedimento realmente proporcione a desinfecção adequada do equipamento.– Altair Sória Pereira, professor da Escola de Engenharia da UFRGS e um dos coordenadores do projeto

Também coordenadora do estudo, a professora da Escola de Engenharia Liliana Amaral Féris explica como a multidisciplinaridade da equipe está norteando o desenvolvimento do trabalho: os pesquisadores da Medicina Veterinária, Virologia e Bacteriologia atuam na avaliação da eficiência dos métodos de desinfecção aplicados nos protótipos, de modo que parâmetros adequados sejam estabelecidos; professores da área da Medicina são referência para concepções teóricas acerca dos protótipos, pois conhecem a realidade dos hospitais que precisa ser levada em conta para que os protocolos sejam viáveis na prática; por fim, os cientistas da Engenharia e Física cuidam da instrumentação, ou seja, desenvolvem os protótipos considerando as medidas para que essa desinfecção seja segura e não apresente riscos. Os professores contam que testes preliminares já estavam sendo realizados quando o edital da Fapergs foi publicado, o que permitiu que o grupo estruturasse um projeto de maneira sólida.

Com o trabalho em conjunto desses polos de conhecimento, os cientistas visam à disponibilização de parâmetros que permitam a criação de equipamentos de desinfecção que sejam ao mesmo tempo eficazes contra o vírus e seguros para as equipes hospitalares. Eles estão desenvolvendo três protótipos de desinfecção de EPIs, que estão sendo testados com o vírus da bronquite infecciosa de galinhas (VBI). Esse microrganismo é parente do SARS-CoV-2, causador da covid-19, o que garante características semelhantes na estrutura dos dois vírus e a mesma resistência aos desinfetantes. O ponto-chave do VBI é que ele não é patogênico para humanos, dispensando o uso de laboratórios de alta segurança, que, neste momento, estão todos mobilizados no combate ao coronavírus.

Protótipos e suas tecnologias

As tecnologias aplicadas no projeto (luz ultravioleta C e gás ozônio) possuem um mecanismo complexo de desinfecção. No caso do ozônio, ocorre o chamado processo oxidativo avançado (POA), que vem se mostrando muito eficiente para degradar compostos orgânicos, pois a substância transforma resíduos contaminados em algo menos nocivo aos humanos e ao ambiente – geralmente água e gás carbônico. Por ser um gás, o ozônio entra facilmente em contato com toda a superfície a ser descontaminada, alcançando eficiência máxima. É por isso que, apesar de haver poucos estudos sobre o assunto, os pesquisadores decidiram utilizar essa tecnologia como germicida.

Já a tecnologia de inativação dos vírus por radiação UVC é amplamente estudada e reconhecida como eficiente dentro de certas condições. Sua ação é baseada nas mutações dos ácidos nucleicos (DNA e RNA): “Qualquer alteração nos ácidos ou no envelope proteico dos vírus já é suficiente para a inativação dos microrganismos”, esclarece o professor da Faculdade de Veterinária Cláudio Canal, que também integra o projeto.

Liliana explica que os protótipos visam à eficiência e à simplicidade. São três modelos para lidar com os diferentes tipos de EPIs, que são muito variados. Basicamente, qualquer EPI que couber nos protótipos poderá ser desinfectado, “seja um EPI feito de um material com que são feitas as máscaras, sejam os plásticos utilizados nos óculos”. Altair ressalta que os projetos precisam de uma boa vedação para que a radiação UVC fique confinada.

O modelo 1 ainda está sendo projetado. Originalmente, ele era uma cabine de descontaminação na qual os profissionais entrariam paramentados. Em função da praticidade e de avaliações feitas sobre a segurança de exposição dos profissionais aos raios UVC, está tendo sua concepção adaptada. Esse protótipo é destinado a EPIs maiores, como aventais e macacões, com altura em torno de 1,90 m a 2 m e largura de aproximadamente 1m. “A ideia é que tenha duas portas, uma de entrada e uma de saída. Os macacões entrariam por um lado, postos num cabide por alguém paramentado que fecharia a porta”. Ou seja, esse equipamento é como um armário de duas portas– uma em cada extremidade – com um gabinete central, cheio de lâmpadas UVC, onde os EPIs seriam colocados, suspensos ou dobrados ao meio. Após um tempo específico de exposição à luz, seriam removidos do gabinete, já descontaminados e prontos para uso.

Segundo protótipo é destinado a EPIs menores, como máscaras e óculos de proteção (Foto: Divulgação)

O protótipo 2 é destinado a EPIs menores, como óculos e máscaras. Consiste em uma câmara com um tamanho próximo ao de um armário de cozinha ou de uma máquina de lavar louça, com cabides ou grades na parte interna. onde são pendurados os equipamentos a serem desinfectados. Depois que os EPIs estão lá dentro, a câmara é fechada,e o processo de descontaminação é iniciado. Altair explica que a equipe ainda está avaliando o tempo de aplicação de ozônio e de luz UVC para eliminar o vírus e se são mais eficazes em conjunto ou em separado. “O UV tem uma grande vantagem: por ser uma luz, assim que ela é desligada, não há nenhum resquício. Quando se usa um gás ou um líquido, é preciso pensar o que vai ser feito com os resíduos”, esclarece o professor, sobre os cuidados que estão sendo desenvolvidos para escolher quando usar esse ou aquele agente germicida. Esse modelo, o 2, que tem uma capacidade de desinfectar 32 máscaras simultaneamente, já apresentou bons resultados em testes realizados com máscaras hospitalares tipo N95. 

O protótipo 3 é um bastão de luz para descontaminar superfícies, parecido com um detector de metais. A ideia é que ele possa ser aplicado em mesas ou em roupas, mas os cientistas ainda estão avaliando as condições para que a desinfecção aconteça. “Há muita diferença entre aplicar o UVC em uma superfície plana e em uma irregular, por isso ainda precisamos estabelecer parâmetros de uso”, explica Liliana.

Quais vírus são usados e como são os testes

O vírus utilizado para simular a contaminação pelo SARS-CoV-2 é o vírus da bronquite infecciosa (VBI). Além desse microrganismo, os pesquisadores também utilizam bactérias de teste, que são utilizadas conjuntamente para aferir o potencial germicida das técnicas. Dessa forma, Altair esclarece que os testes biológicos com o VBI começaram com a técnica RT-PCR em tempo real , a mesma que se utiliza para ver se alguém já foi contaminado com o coronavírus. O princípio dessa etapa é identificar traços remanescentes do RNA do vírus utilizado, ou seja, após submeter as peças à descontaminação, é verificado se ainda há algum fragmento do RNA de vírus nelas. O dilema desse método é que ele é extremamente sensível: ele acusa se há algum resquício do vírus (no caso, RNA), independentemente de essa parte ainda ser perigosa ou capaz de infectar alguém. Nesse sentido, ainda que a agressão causada ao vírus pela luz UVC ou pelo ozônio tenha destruído o envelope proteico presente na estrutura dele, inativando-o, a PCR ainda pode acusar presença do RNA, dando resultado positivo — sem confirmar se o EPI de fato foi descontaminado e está seguro para uso.

Pesquisadores utilizam o vírus da bronquite infecciosa de galinhas, um parente do SARS-CoV-2, para testar a eficácia da descontaminação – Foto: Divulgação

O professor Cláudio Canal explica que, para contornar essa situação, uma cepa do VBI adaptada para se multiplicar em cultivo de células foi utilizada para aferir a capacidade do vírus submetido aos métodos de desinfeção se multiplicarem. As peças que passaram pela descontaminação e pela PCR são submetidas a essa outra técnica, na qual o vírus é inoculado em células cultivadas para que, caso ele esteja vivo, se multiplique, podendo destruir aquela célula e infectar as demais, iniciando um ciclo infeccioso— assim como os vírus agem de fato no nosso corpo. Portanto, espera-se que esse microrganismo não seja capaz de se multiplicar, ainda que parte de seu genoma esteja presente ali, como acusa a RT-PCR em tempo real. “Esse se revelou um método mais adequado de avaliação da eficácia, pois foca na capacidade infecciosa do vírus”, complementa Altair.

A metodologia e o papel da universidade

Preocupados com o futuro, os coordenadores ressaltam que não se sabe como será o mundo pós-pandêmico. Eles acreditam em uma série de novos hábitos no qual a desinfecção possa se tornar rotina. Para lidar adequadamente com esse novo contexto, será necessário ter conhecimento de base, que é o eixo central de todo o estudo. Como ressalta Liliana: “[Nosso papel] é dar informações com bases científicas e verdadeiras. O dever da universidade é passar conhecimento”. 

Ainda que tenha o lado de contribuir com o momento atual, fortalecendo hospitais frente à pandemia com os métodos de desinfecção, os professores contam que a metodologia desenvolvida pode ter outras aplicações. A coordenadora defende: “Temos um procedimento que avalia a eficácia de um certo método, que pode ser aplicado para outras tecnologias de desinfecção. A mesma metodologia que estamos desenvolvendo vai poder ser usada em outras situações”. 

O papel da Universidade é dar informações com bases científicas e verdadeiras.– Liliana Amaral Féris, professora da Escola de Engenharia da UFRGS e uma das coordenadoras do estudo

Além de já realizarem os testes da pesquisa com parceiros, o coordenador exemplifica o caso de uma empresa local que pediu ajuda para avaliar a segurança e a eficiência para desinfecção de um robô com lâmpadas UV. “O conhecimento que desenvolvemos já nos permitiu apoiar uma empresa a avaliar e estimar a eficácia do equipamento que eles estão projetando. Eu creio que o legado maior que podemos deixar é ter essa capacidade de fornecer informações e dar respostas para a sociedade”, explica.

De acordo com os professores, mais do que os protótipos que estão criando, os protocolos e o conhecimento ficarão para o futuro. Eles afirmam que a metodologia deverá ser pública, de modo que setores interessados na descontaminação possam ter métodos comprovadamente seguros e eficazes para utilizar. [1]

[1] Texto de Thiago Sória.

Como citar esta notícia científica: UFRGS. Pesquisadores avaliam efetividade de métodos de descontaminação de EPIs com luz ultravioleta e gás ozônio. Texto de Thiago Sória. Saense. https://saense.com.br/2020/08/pesquisadores-avaliam-efetividade-de-metodos-de-descontaminacao-de-epis-com-luz-ultravioleta-e-gas-ozonio/. Publicado em 20 de agosto (2020).

Notícias científicas da UFRGS     Home