Jornal da USP
30/11/2020
Em artigo publicado na revista Novos Olhares, o pesquisador Robson Kumode Wodevotzky, doutorando e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, e Norval Baitello Jr., professor na pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, propõem mostrar os elementos que compõem os processos de criação do dublador e estimular uma reflexão acerca da dinâmica de repetição do intérprete, em seus aspectos imaginativos e formais, sob a luz dos processos de preparação do ator.
Em função da pandemia do novo coronavírus, os cinemas estão fechados para não haver aglomeração, de acordo com as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Sendo assim, os apreciadores e fiéis espectadores das telas, consolam-se com filmes dos canais de TVs abertas, pagas, aplicativos, YouTube e outros recursos de mídia. E quem acompanha séries foi surpreendido pelas histórias legendadas, pois a pandemia afastou muitos dubladores dos estúdios de dublagem, em todo o mundo. Se a legenda favorece quem não domina o idioma do filme ou quem tem deficiência auditiva, desfavorece deficientes visuais, analfabetos, ou quem prefere o conforto de assistir sua história favorita sem precisar se distrair lendo legendas.
Além do aspecto de quem assiste, há a importante questão do mercado de trabalho para o dublador, no momento restrito, mas que possibilita a esse profissional desenvolver e brindar o público com essa arte criada e realizada fora dos holofotes. O dublador é um ator cujo trunfo é a voz. Para Wodevotzky e Baitello Jr, a dublagem é entendida como a “substituição da faixa sonora de diálogos originais por diálogos em outro idioma (em um processo de tradução)”, na sincronização perfeita entre a voz do ator da imagem nas telas e a voz do dublador.
Se o dublador precisa ser fiel à interpretação do ator na tela e ter como referência a imagem desta, ele não deve prescindir da “subjetividade e a relação do artista (dublador) diante das telas, sem modificar os sentidos da obra dublada”, explicam os autores. Quando se fala em imagem sonora na dublagem, que transita entre forma e imaginação, o dublador começa seu trabalho pela observação da obra audiovisual finalizada para então atuar com o processo de repetição, complementadas com a imaginação do ator, “que filtra o material recebido do autor e do diretor e elabora com a imaginação, fazendo parte de nós, espiritual e até fisicamente”, segundo o ator e diretor de teatro russo, Constantin Stanislavski, no livro A preparação do ator.
Stanislavski diz que “a fala é música […] a pronúncia, em cena, é uma arte tão difícil como o canto”. Para o ator e, principalmente, para o dublador, a palavra cria as imagens. O som da fala é a expressão das imagens interiores, criadas pela força da imaginação do dublador. Há alguns elementos que aquele deve ter em mente em relação à voz: volume, tom, intenção, intensidade da intenção, tempo-ritmo e a musicalidade da fala, de acordo com a musicalidade de seu próprio idioma.
Um bom dublador é consciente das armadilhas da chamada “iconofagia”, ou seja, deixar-se levar apenas pelas imagens, sem conseguir tempo para refletir sobre elas, atribuir-lhes significado, emoções ou sentimentos, deixar-se engolir, perder “a capacidade de se emocionar e apenas reproduzir a carcaça estético-formal de seus referentes sonoros, de maneira automatizada e programada […] acabando por se robotizar”.
O dublador também precisa estar consciente de que o seu trabalho é repetir, reproduzir, mas criar suas próprias imagens com base nas imagens a ele apresentadas na tela, processando-as internamente, reproduzindo-as a partir do interior de seu ser, de suas forças motivadoras, de sua imaginação: “É preciso ser afetado para sentir; sentir para afetar”, explicam os autores do artigo.
Nesse contexto, Stanislavski se refere ao ator como alguém que deve representar, estar em cena, como em um texto, deve ser a relação da gramática com a poesia: “É triste quando considerações gramaticais avassalam o poético”, no que concordam Baitello Jr. e Wodevotzky a respeito dos dubladores – os elementos “estético-formais” não podem suprimir a imaginação.
Ao reproduzir o conteúdo original, o dublador precisa respeitar a “forma estética do conteúdo a ser reproduzido”. Ressalta-se também que ele não pode prescindir das imagens internas produzidas em seu processo criativo da dublagem, pois essas imagens “transbordarão em suas palavras e formarão as imagens sonoras, as quais se sincronizarão com a imagem já existente”, preservando a essência da história, rica em sentimentos e emoções que se propagarão e conduzirão “a movimentos, a sensorialidades e a reconexões”.
Artigo
WODEVOTZKY, R.; BAITELLO JR., N. Processos de criação em dublagem. Novos Olhares, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 173-184, 2020. ISSN: 2238-7714. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2238-7714.no.2020.163697. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/novosolhares/article/view/163697. Acesso em: 15 set. 2020.
Contatos
Robson Kumode Wodevotzky – Doutorando e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é ator, dublador e diretor de dublagem. E-mail: robsonkumode@gmail.com
Norval Baitello Jr. – Docente titular na pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, coordenador da área de Comunicação e Ciência da Informação da Fapesp (2007 a 2016). E-mail: norvalbaitello@pucsp.br
Por Margareth Arthur/Portal de Revistas USP
Como citar esta notícia: Jornal da USP. Artigo analisa o processo de criação da arte quase desconhecida da dublagem. Texto de Margareth Arthur. Saense. https://saense.com.br/2020/11/artigo-analisa-o-processo-de-criacao-da-arte-quase-desconhecida-da-dublagem/. Publicado em 30 de novembro (2020).