Jornal da USP
29/12/2020

(Imagem de Bruno /Germany por Pixabay)

Por Maria Arminda do Nascimento Arruda, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/ USP) e coordenadora do Escritório USP Mulheres.

É lugar-comum afirmar que 2020 será um ano marcante e inesquecível; do mesmo modo reconhecer que o próximo tenderá a ser de recuperação em todos os sentidos da vida: subjetivos, afetivos, econômicos, políticos, culturais, sanitários, dentre outros. A pandemia devastou todas as nossas formas de convivência e impôs restrições de tal ordem que projetar a sua ultrapassagem é exercício inseguro e ainda não nos é permitido avaliar todas as consequências por ela deixadas, uma vez que a imprevisão tem sido nossa conselheira cotidiana. Nesse contexto, muito dificilmente poderemos aventar, com convicção, os efeitos causados pela expansão desse mal que não poupou nenhuma região do planeta.

Apesar disso, alguns reconhecimentos são passíveis de serem admitidos: o desequilíbrio ambiental provocado pela ação humana predatória está na raiz do coronavírus; o trânsito global de pessoas, independentemente das motivações, se rompeu fronteiras, foi refreado no curso da expansão da doença, porém substituído por deslocamentos virtuais; aprofundaram-se os mecanismos tecnológicos de comunicação humana, que se movem desatadamente, seja de modo virtuoso, seja dissolvente; as atividades de trabalho deslocaram-se, majoritariamente, para a esfera doméstica, impactando o universo das relações íntimas, ao elidir a separação entre os espaços públicos e privados; os governos viram-se aturdidos diante do mal, e frequentemente responderam de forma errática diante do acontecido; a crise econômica abateu-se sobre o conjunto, mas atingiu, impiedosamente, os assalariados e os trabalhadores informais, aprofundando a desassistência; as políticas econômicas dominantes foram postas em xeque; a ciência, diante do inusitado, foi levada a apelar para medidas conhecidas há milênios, como a quarentena e o distanciamento social; as práticas educativas há décadas sedimentadas foram compungidas a se adequarem aos novos formatos; o significado civilizatório da escola e as formas extrovertidas de sociabilidade dominantes foram arrefecidos; o consumo foi refreado, tendo que se deslocar para a aquisição de produtos on-line.

Todas essas manifestações – e que atingiram os habitantes do planeta – subverteram crenças, comportamentos, relacionamentos, enfim, o modo de vida instituído pela moderna globalidade. O seu impacto sobre a produção do conhecimento, da cultura, da ciência tem sido ponderável, como têm revelado pesquisas recentes, especialmente na área das atividades criativas. Passados os momentos iniciais de perplexidade, as Ciências Médicas e Biológicas tiveram que acelerar os seus experimentos, com a descoberta de vacinas em tempo recorde, assim como foram obrigadas a pôr em ação medidas sanitárias e de atendimento de doentes nem sempre de domínio corrente. O legado deixado será altamente positivo, pois as descobertas científicas foram incrementadas em tal intensidade que deverão constituir-se em divisor de águas das pesquisas futuras. A crença no poder superior da ciência, todavia, tem sido contrariada pelo obscurantismo de governantes e de manifestações nas redes sociais. Mas a valorização da pesquisa científica deverá impor-se, dados os efeitos redentores da imunização. Derivará daí, provavelmente, uma sorte de humildade, que desaconselhará a arrogância no poder ilimitado da ciência especializada e da tecnologia. Se muito se sabe, muito se terá que saber.

O aprendizado advindo dependerá, concomitantemente, do reconhecimento da complexidade da pandemia, cujo equacionamento é tributário do concurso de várias outras disciplinas e de políticas de Estado que possam romper o domínio desabrido do movimento dos ativos no mercado global. Dito de outra maneira, a pandemia escancarou a extrema desigualdade social em escala mundial, porém trouxe no seu bojo a revelação de um gradiente de desassistidos, mais profundo em certas regiões do que em outras, mas comuns a todas quando se considera marcadores étnico-raciais e de gênero. O racismo, o domínio sobre as mulheres e a pobreza passaram a mostrar o caráter indecoroso da riqueza de poucos frente à miséria de muitos. Nesse cenário, as Ciências da Saúde deverão aprofundar os nexos com as Ciências Humanas e Sociais e postular políticas sanitárias integradas, um sistema de saúde robusto e socialmente abrangente.

Muito certamente, o alarido produzido pela crise pandêmica provocará mudanças nas práticas e entendimentos sobre a natureza da pesquisa científica. Nesse diapasão, as crenças neoliberais, que veem reafirmando a ideia de Estado mínimo, com consequente diminuição de recursos para políticas sociais, deverão abrir espaços para iniciativas públicas socialmente comprometidas, que são a própria condição de ultrapassagem da calamidade resultante, da qual os milhares de mortos são exemplos dolorosos, mas de desigual ocorrência, atingindo mais os “de baixo”. A qualidade das políticas governamentais deverá, por essa razão, ganhar espaço. Além da consciência do resultado iníquo das desigualdades, que pressupõe o concurso de projetos sanitários, as políticas de preservação ambiental ganharão relevo, pois a pandemia trouxe à luz os efeitos lesivos das práticas predatórias, dos desequilíbrios resultantes, que se localizam na raiz da propagação do vírus.

Finalmente, outros desdobramentos se anunciam, alterando, substancialmente, a vida social, de modo objetivo e subjetivo. Trata-se da virtualidade que ditará o ritmo de todas as esferas da convivência humana, cuja abrangência e consequências imprevistas ainda não se pode aquilatar com segurança. Milhões de habitantes do planeta foram obrigados a se assenhorarem das tecnologias digitais, frequentemente a duras penas. Indiferenciou-se o mundo do trabalho da esfera da intimidade e da família, das pessoas privadas das suas atividades produtivas, do descanso da obrigação contínua. Se para profissões intelectuais e artísticas essa convivência já era comum, o novo formato passou a exigir, porém, o constante cumprimento de tarefas, sem delimitação de horários, em fluxo contínuo, em decorrência do ativismo digital que medrou no terreno do isolamento, seja por motivos vicários, ou por imposição do ritmo acelerado imposto pela tecnologia. Nessa perspectiva, a separação entre vida pública e privada perdeu seu caráter específico, frente a uma cultura dos meios informacionais que passaram a comandar a dinâmica da sociedade. Os efeitos serão ponderáveis, pois a comunicação mediada estará presente no horizonte das sociedades contemporâneas, avançando no terreno da precarização do trabalho, dissolvendo a esfera privada na sua perda de autonomia. A tais modificações afetivas, os marcos característicos do mundo conhecido até o ano 2020 não estão garantidos.

Como citar este artigo: Jornal da USP. Muito já se sabe. Mas ainda há muito por saber. Texto de Maria Arminda do Nascimento Arruda. Saense. https://saense.com.br/2020/12/muito-ja-se-sabe-mas-ainda-ha-muito-por-saber/. Publicado em 29 de dezembro (2020).

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