Agência FAPESP
31/03/2021
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – O primeiro atlas integrado das células do pulmão humano foi construído na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp) com base na análise dos transcritos de mais de 130 mil células. Por meio do atlas, os pesquisadores verificaram que um subtipo de células dos alvéolos pulmonares, nas quais ocorre a troca do oxigênio respirado do ar por gás carbônico, constitui um dos alvos principais do SARS-CoV-2.
Além disso, a pesquisa mostrou que proteínas das vias de inflamação, coagulação e controle da pressão arterial também estão presentes nessa mesma subpopulação de células pulmonares.
“O estudo foi o primeiro a demonstrar que a mesma subpopulação de células pulmonares que expressa grande quantidade da proteína que serve como receptor do SARS-CoV-2 [ACE-2] também expressa grande quantidade de proteínas regulatórias da inflamação, coagulação e pressão arterial. Isso pode explicar por que o vírus é capaz de causar simultaneamente danos em todos esses sistemas, colocando em grande risco a vida das pessoas infectadas”, diz Licio Augusto Velloso, professor titular da FCM-Unicamp, coordenador da pesquisa e pesquisador responsável pelo Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP.
O estudo foi desenvolvido como parte do projeto de doutorado de Davi Sidarta de Oliveira, orientando de Velloso. Os resultados foram divulgados na revista Scientific Reports, do grupo Nature.
Para entender o alcance do trabalho realizado, é preciso recapitular o mecanismo da infecção por SARS-CoV-2, o vírus causador da COVID-19. “Esse vírus entra nas células humanas usando como receptor uma proteína chamada ACE-2. Ela está presente em vários órgãos, como pulmões, rins e intestinos, e sua função envolve a regulação de três sistemas muito importantes para a manutenção da vida: o cardiovascular, o imunológico e o de coagulação sanguínea”, explica Velloso.
Estudos publicados logo no início da pandemia mostraram que o SARS-CoV-2 possui uma pequena proteína externa à sua cápsula viral, chamada spike (ou proteína de espícula). Há várias cópias dessa proteína recobrindo o vírus, o que faz com que ele tenha forma parecida com a de uma coroa – daí o nome da família a que pertence, os coronavírus. É exatamente a proteína spike que se liga à ACE-2 para permitir a entrada do vírus nas células humanas.
A ligação do vírus à ACE-2 pode interferir no funcionamento adequado dessa proteína. “Por se tratar de uma proteína importante para regular a inflamação [sistema imune], a pressão sanguínea [sistema cardiovascular] e a coagulação, suspeitou-se que não apenas a entrada do vírus nas células humanas, causando danos funcionais e morte celular, mas também sua relação física com a ACE-2 poderia explicar os quadros graves de COVID-19, nos quais os pacientes desenvolvem um importante processo inflamatório do pulmão, acompanhado de distúrbios da coagulação sanguínea e alterações cardiovasculares”, afirma o pesquisador.
Estudos anteriores já haviam demonstrado que o pulmão tem grande quantidade de ACE-2, porém não se sabia com detalhe quais células pulmonares apresentam maior quantidade dessa proteína, já que existem mais de 40 tipos distintos de células nesse órgão. “Conhecer em quais dessas células há mais ACE-2 poderia nos ajudar a entender melhor como o vírus entra e danifica essas células”, comenta Velloso.
Nos últimos anos, a ciência desenvolveu uma metodologia que permite estudar com detalhe todos os genes que são expressos (ou seja, que resultam na produção de proteínas) nas diferentes células do organismo. Esse método chama-se sequenciamento de RNA de células individuais (single-cell RNA sequencing). A análise dos dados gerados com o sequenciamento de grande número de células é bastante complexa e requer algoritmos computacionais que permitam a análise de uma enorme quantidade de variáveis.
“Para definir quais células do pulmão humano expressam a ACE-2 e se sua expressão ocorre nas mesmas células que possuem outras proteínas envolvidas na regulação da inflamação, coagulação e controle da pressão arterial, nosso grupo desenvolveu, como parte do projeto de doutorado de Oliveira, um programa, denominado dbMAP, que foi utilizado para analisar os transcritos das mais de 130 mil células do pulmão humano”, relata o pesquisador.
Com esse método, a equipe pôde construir o atlas mencionado – o primeiro de seu gênero. E, na sequência, elucidar toda a cascata de efeitos relacionados com a ACE-2, envolvendo os alvéolos pulmonares e os sistemas regulatórios da inflamação, coagulação e pressão arterial. “Estes conhecimentos poderão favorecer não apenas o tratamento como também a prevenção da COVID-19”, conclui Velloso.
A pesquisa também contou com o apoio de pesquisadores do Centro de Engenharia e Ciências Computacionais (CECC), outro CEPID apoiado pela FAPESP com sede também na Unicamp.
A íntegra do artigo SARS-CoV-2 receptor is co-expressed with elements of the kinin–kallikrein, renin–angiotensin and coagulation systems in alveolar cells pode ser lida em https://www.nature.com/articles/s41598-020-76488-2.
Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
Como citar este texto: Agência FAPESP. Atlas do pulmão ajuda a entender efeitos do novo coronavírus nos alvéolos. Texto de José Tadeu Arantes. Saense. https://saense.com.br/2021/03/atlas-do-pulmao-ajuda-a-entender-efeitos-do-novo-coronavirus-nos-alveolos/. Publicado em 31 de março (2021).