Jornal UFG
30/03/2021

(Imagem de Gordon Johnson por Pixabay)

Por Júlia Barbosa*

Ao nos deparamos com um mapa global, aquele que pode ser pintado de várias cores, dividido entre climas, população, desenvolvimento econômico, sistema político, com incontáveis legendas, que mais popularmente ilustra Europa e América do Norte em cima, superiores às infelizes nações de “terceiro mundo”, é comum não questionar ou desconfiar do que se apresenta. Ao que parece, estavam todos tirando um cochilo quando alguém decidiu reorganizar o caos planetário. E assim, com o discurso da territorialização, desterritorializa-se. A tão sonhada globalização exclui a maioria da humanidade.

Não é à toa que, acordados, os seres excluídos do projeto de esquartejamento global alimentam a utopia de um mundo sem fronteiras. Utopia, sim, que em seu próprio conceito se reconhece em um imaginário sem limitações. Este mundo utópico, assim como as distopias do real, é aprofundado pelo escritor e professor camaronês Achille Mbembe, um dos mais influentes pensadores contemporâneos em descolonização e raça, em seu escrito “A ideia de um mundo sem fronteiras”¹.

Mbembe afirma que a função de uma fronteira, na realidade, é ser cruzada. A mobilidade, o movimento, é cultural e histórica, relacionada, ainda, à questão da sobrevivência: pessoas em condição de refúgio são obrigadas a deixarem seu país de origem pela preservação da própria vida, seja por estarem fugindo de perseguições individuais, como por causas políticas e religiosas, seja por um contexto de grave violação de direitos humanos.

No entanto, percebemos que, na tradição liberal, enquanto o atravessamento de alguns para outros territórios é considerado exercício de sua liberdade individual, este mesmo atravessamento, porém, feito por outros corpos, especialmente os racializados, é encarado como impróprio ou ameaçador. O capital, os bens e a mercadoria possuem mais espaço no mundo do que estes corpos estigmatizados.

Como, então, pensar o deslocamento forçado de pessoas neste contexto? Se o direito de ir e vir tem pesos e medidas diferentes entre os cidadãos e cidadãs do mundo, a condição de refúgio é agravada, ainda mais. O controle sobre corpos e suas movimentações, entendido como demonstração de soberania de Estado, consegue intensificar enormemente a vulnerabilidade destes grupos.

Assim, enquanto construímos um mundo sem fronteiras, que emergirá dessa nossa utopia, é preciso pensar e promover, coletivamente, soluções duradouras que possam acolher, assistir e proteger os refugiados do mundo. Medidas que assegurem que estas pessoas não apenas tenham direitos, mas, principalmente, condições de exercê-los.

Nos atravessamentos da vida, as nossas possibilidades de trocas, de reconhecimento do outro e de produção de sentidos compartilhados estão nos cruzamentos, nas intersecções que formam vínculos e possibilitam a construção de um outro-eu. Na cultura iorubá, é na encruzilhada que são deixadas as oferendas e sacrifícios, pois é lá a ponte entre um mundo e outro. Que possamos, então, nos encontrar em suas – e nossas – encruzilhadas.

¹. MBEMBE, Achille. A ideia de um mundo sem fronteiras. Tradução de Stephanie Borges. Revista Serrote, 2019.

* Júlia Barbosa é graduanda em Jornalismo pela UFG e estagiária na Cátedra Sérgio Vieira de Mello. Integra o Coletivo e Laboratórios Integrados em Jornalismo Compartilhado Magnífica Mundi.

Como citar este artigo: Jornal UFG. Quem permitiu o esquartejamento do mundo?  Texto de Júlia Barbosa. Saense. Flor do lúpulo é usada na fabricação de cervejas (Foto: Pixabay). https://saense.com.br/2021/03/quem-permitiu-o-esquartejamento-do-mundo/. Publicado em 30 de março (2021).

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