Fiocruz
26/05/2021

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A imprensa também é responsável pela invisibilidade da Região Norte do país, avalia o jornalista e pesquisador José Gadelha, assessor de comunicação da Fiocruz Rondônia. Nascido em Santarém (PA), mas morador de Porto Velho há mais de 30 anos, ele analisa a questão com o olhar de quem acumula as experiências de editor e apresentador do Bom dia Amazônia, um dos mais importantes telejornais da região, exibido diariamente na Rede Amazônica Rondônia, afiliada da Rede Globo no estado.

Na conversa que teve com a Radis pelo telefone, no fim do mês de abril, Gadelha também trouxe o olhar de pesquisador. Jornalista graduado pela União das Escolas Superiores de Rondônia (Uniron) e mestre em Letras pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR), ele iniciou em 2021 o curso de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação e Saúde (PPGICS), no Icict/Fiocruz, onde pretende pesquisar os processos de construção de sentidos em textos da mídia jornalística, a partir de notícias veiculadas em telejornais de Rondônia e Amazonas, no contexto da pandemia de covid-19.

Sobre o desconhecimento do país em relação à região e ao estado onde vive, ele avaliou que a invisibilidade decorre em parte pela formação identitária regional híbrida e em parte pela manutenção de um discurso colonizador, que acentua a sensação de não pertencimento. Em outro viés, analisa a invisibilidade como questão estrutural de comunicação, que reflete o isolamento físico imposto à região pelos veículos de comunicação e, por outro lado, as deficiências na formação dos profissionais da área, que enfrentam uma desequilibrada disputa por espaço nos noticiários nacionais.

Organizador do livro Saber Amazônico na Mídia: Produção Científica em Porto Velho, que reúne resultados de pesquisas científicas realizadas por jornalistas-pesquisadores de Rondônia, e integrante da Academia Rondoniense de Letras, Ciências e Artes (ARL) desde 2020, Gadelha também falou sobre a romantização da Amazônia e seus impactos para a manutenção do distanciamento de Rondônia do restante do país, avaliando reflexos na concretização de políticas públicas como saúde e educação. “Como vamos alcançar condições melhores de vida se não conhecermos as nossas origens e não defendermos quem somos nós?”, ponderou.

Considerando que a visibilidade é um fenômeno de comunicação e de saúde, como você percebe a invisibilidade da região Norte nos meios de comunicação?

Eu concordo que há essa invisibilidade. Na prática, o que se percebe é uma ausência exacerbada, inclusive nesse contexto da pandemia, de assuntos que possam mostrar a realidade dos estados e das populações da Amazônia. Existe uma imagem no senso comum, reforçada pela mídia, que só divulga notícias ruins da região. Ainda assim, com muita dificuldade, observamos nos noticiários iniciativas que valorizam as peculiaridades da região frente aos desafios. Claro que as desigualdades existem, como em qualquer outro lugar, mas quando voltamos os olhos para Rondônia, por exemplo, é preciso mostrar, além das operações policiais e do seu potencial econômico, a educação que se pratica nas comunidades ribeirinhas e a forma criativa como os professores lidam com as adversidades. Da mesma forma, deveria ter maior divulgação o trabalho de profissionais da saúde que levam atendimento às comunidades indígenas mais distantes, que já sofrem com a exclusão. Em alguns casos, estas equipes de saúde levam até cinco dias para chegarem ao local onde vão fazer os atendimentos. Esses são apenas dois pontos que mostram aspectos do nosso cotidiano e das pessoas que tornam o estado de Rondônia realidade. A própria história do estado é encantadora, mas a gente só ouve falar sobre o assunto no contexto das aulas de História. O nosso principal símbolo histórico — a Estrada de Ferro Madeira Mamoré — foi responsável, inclusive, pela vinda de Oswaldo Cruz, no começo do século 20, quando elaborou o primeiro relatório sobre as condições sanitárias da região.

Uma história que pouco se conhece…

Muitas vezes tenho a impressão de que essas questões ficam restritas aos estudantes do ensino médio. No âmbito da pesquisa, o assunto é evidenciado, mas fica restrito também ao universo acadêmico. Isso é um ponto que precisa ser debatido, dentro e fora das universidades. De nada adianta a produção de todo o conhecimento sobre os dilemas e questões que envolvem a Amazônia, se não houver a divulgação dos resultados dessas pesquisas para a sociedade. É uma forma de dar retorno à população e chamar a atenção para a importância da pesquisa, ao mesmo tempo. Vejo que a mídia também exerce um papel muito importante nesse diálogo com a comunidade, desde que se aproprie desse conhecimento e o coloque na sua agenda de pautas.

A que você atribui essa pouca visibilidade?

Eu penso que há toda uma engrenagem, uma estrutura que movimenta e que mantém esses quadros de invisibilidade. Eu acredito também, como dizem alguns historiadores, que em relação ao estado de Rondônia e à Amazônia, as marcas profundas da “presença do colonizador” são algo ainda muito forte. Prevalece no imaginário popular a imagem de uma Amazônia muito distante da realidade, o lugar exótico, do místico, marcado por uma visão estereotipada. São ideias que foram ao longo do tempo propagadas pelos livros e pela própria mídia. Enquanto esse discurso se reatualiza, a verdadeira Amazônia, essa que nós conhecemos, deixa de aparecer.

Em sua opinião, qual é a identidade de Rondônia?

Rondônia é um estado genuinamente formado por populações de migrantes, por pessoas que vieram de outras partes do Brasil, em momentos e contextos diferentes. Isso se intensificou de forma muito robusta a partir das décadas de 1970 e de 1980, com a abertura de estradas e a política do Governo Federal de distribuição de terras. Veio muita gente de fora para cá, também atraída pelo ouro e pela construção das usinas hidrelétricas. Estudiosos afirmam que a identidade do povo de Rondônia é híbrida, principalmente de Porto Velho — a capital do estado. É uma identidade que é pluri, multicultural. É uma população “mesclada”.

Como isso se relaciona com a invisibilidade?

Eu acredito que talvez, no processo de formação do estado de Rondônia, especificamente, o fato de ter reunido muitos grupos populacionais com outras origens, com suas tradições e costumes, a sua cultura, tenha influenciado esse processo. Mesmo que tenham estabelecido moradia aqui, constituído família e realizado o sonho de “conquistar um lugar”, no fundo, ainda existem algumas raízes. Ouço muitos comentários — de pessoas próximas até — que falta esse sentimento de pertencimento ao lugar. Eu acredito que tudo isso influencia para que haja essa invisibilidade. Eu vejo, em muitas ocasiões, que falta também uma postura mais participativa das pessoas em relação aos assuntos e decisões que são de interesse coletivo. Quando nós “brigamos” por aquilo que nos pertence ou por aquilo que queremos, temos mais possibilidades de dar voz aos nossos interesses.

Qual a razão disso?

Talvez isso também tenha alguma relação com a limitação no processo de formação dos comunicadores, e até mesmo na percepção que eles têm da realidade — ou como relacionam essa percepção com a construção e o direcionamento de suas pautas. Se a gente considerar a mídia como um espaço de poder e de utilização do poder — uma ferramenta que pode dar voz aos diferentes seguimentos da sociedade — nós veremos uma tendência muito grande de atribuição do “direito de fala” às instituições ou pessoas que já exercem uma certa autoridade sobre os demais. Do outro lado, quando um cidadão comum não se vê atendido, ele começa a desacreditar nesse espaço de interlocução, o que acaba ampliando o distanciamento entre a mídia e a comunidade. Seria muito bom e saudável, nesse processo democrático, que víssemos com mais frequência pessoas defendendo suas pautas, suas causas, tanto aquelas que mostrem as suas necessidades quanto as que evidenciem o que temos de bom, e não exclusivamente o lado ruim de nossa realidade.

A sua família também é de migrantes. Fale mais sobre as suas origens.

Nós morávamos em Santarém, no Pará. Lembro-me que da janela de casa, eu conseguia ver o rio Tapajós. Nunca esqueci dessa paisagem. Eu nasci lá, mas meus pais são cearenses. Em 1989, nós viemos para Rondônia, quando meu pai veio trabalhar como garimpeiro no Rio Madeira. Ele já tinha trabalhado por vários anos no garimpo da Serra Pelada [no Pará] e decidiu que em Rondônia seria melhor para a nossa família. Somos nove filhos, e eu sou o mais novo. Hoje, meu pai é aposentado e só recentemente veio frequentar a escola, estudou o suficiente para aprender a escrever o nome, por meio do Programa de Educação para Jovens e Adultos (EJA); minha mãe estudou até a quinta série e tinha o sonho de ser professora.

Como nativo do Norte, você percebe uma romantização da Amazônia?

Existe, e em grande parte a mídia colabora para isso. No processo de escolarização, o que a gente aprende sobre a Amazônia nos livros didáticos também colabora para essa romantização. Isso vem mudando muito recentemente, mas os livros didáticos sempre mostraram o indígena associado à floresta, e muito frequentemente ligado à chegada dos portugueses. As coisas mudaram, temos indígenas nas universidades, fazendo pesquisa e aplicando o conhecimento em suas comunidades. A própria construção da imagem sobre a Amazônia é algo que foi vendido e difundido por muito tempo, por meio dos relatos de viagens que descreviam uma região exótica, com “seres” que em nada se igualavam aos habitantes do mundo europeu. Os livros ainda evidenciam uma Amazônia que não condiz com a realidade em muitos aspectos. A mídia também. Recentemente, em um grande veículo de televisão, a abertura de uma reportagem que pretendia mostrar o esquema de segurança em um presídio federal mostrava uma cena de floresta, enquanto apresentava a cidade de Porto Velho. Porto Velho não é só floresta. Isso é a retomada de um discurso pré-construído, impregnado de marcas do colonizador.

Qual o impacto da manutenção dessa imagem para quem vive na região?

Há uma série de impactos. Em primeiro lugar, eu destacaria a formação intelectual das pessoas, o que se desdobra em outros prejuízos. A manutenção desses discursos e de uma imagem pré-construída sobre a região reflete até mesmo na percepção das pessoas sobre o seu espaço, a sua comunidade, e na forma como elas conduzem e enfrentam as suas mazelas. Não ter oportunidades de acesso a uma educação melhor, à saúde que funcione, a saneamento básico e moradias dignas é, acima de tudo, uma afronta à dignidade humana. Mas não conhecer o que está por trás desses discursos sobre a nossa região, sendo um morador daqui, é no mínimo preocupante. Por outro lado, vejo que isso gera impactos diretos na elaboração de políticas públicas que possam assistir a muitas de nossas necessidades, seja na saúde, na educação básica, na formação universitária, na geração de empregos, no nosso desenvolvimento. Como vamos alcançar condições melhores de vida se não conhecermos as nossas origens e não defendermos quem somos nós?

Que outros aspectos impactam a vida cotidiana?

O acesso é mais difícil para nós também por conta das distâncias. Tudo é muito longe, são viagens muito demoradas, com muitas conexões, é muito complicado. Se não forem os voos, temos acesso pela BR-364, via Mato Grosso, mas em muitas situações é logisticamente inviável. No campo da pesquisa, ouço os pesquisadores, com os quais trabalho, comentarem que os insumos chegam aqui com muito atraso. Isso ainda acontece hoje. Outro reflexo dessa distância é essa própria dificuldade de a gente sobreviver à essa imagem construída sobre a Amazônia como região longínqua. É longínquo? É. É distante? É. Mas, aqui acontecem muitas coisas, muitas pesquisas são desenvolvidas no campo da Saúde Pública, por exemplo. A própria construção da Fiocruz Rondônia, a partir de 2009, é uma história belíssima. Mesmo assim, para se fazer pesquisa com poucos investimentos e se mostrar que essas pesquisas são realizadas com excelência em relação a outros estados, que já dispõem de uma série de estrutura e tecnologia de ponta, ainda é muito difícil. Mas estamos caminhando!

Como a Fiocruz Rondônia tem contribuído para mudar este cenário?

O surgimento da Fiocruz Rondônia se insere em um contexto de busca pelo desenvolvimento da pesquisa na região Norte. Veja que no fim da década de 1980, por exemplo, Rondônia chegou a registrar mais de 300 mil casos de malária por ano. Então, para investigar a malária, grupos de pesquisadores se instalaram aqui e começaram a desenvolver diversos estudos. Chegou a ser construído, no município de Costa Marques, um centro de pesquisa científica em malária, pela Universidade de Brasília (UnB) em parceria com o exército americano. Mais tarde, esse centro foi transferido para Porto Velho onde existe até hoje — é o Centro de Pesquisa em Medicina Tropical (Cepem). Fruto desse tempo, em que se estabeleceram também pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (ICB/USP), surgiu o Instituto de Pesquisas em Patologias Tropicais (Ipepatro), que se tornou o ancoradouro do escritório técnico da Fiocruz, a partir de 2009. De lá para cá, foram se desenvolvendo diversas frentes de trabalho e pesquisa em doenças negligenciadas. E todo esse trabalho que a Fiocruz Rondônia realiza vem ganhando cada vez mais visibilidade na mídia regional, pois a comunicação para a sociedade, daquilo que se realiza dentro e fora dos seus laboratórios, faz parte de sua nobre missão.

E quais são os impactos da pouca visibilidade na saúde? Como isso aparece no dia a dia?

Se a gente considerar que a imprensa é uma ferramenta que também promove a educação em saúde, um instrumento de formação das pessoas sobre os processos de saúde e doença, os meios de buscar atendimento e a quem recorrer quando esse atendimento for negado, a invisibilidade contribui para que as pessoas deixem de receber informações importantes sobre as doenças comuns que afetam a região. A ausência da divulgação de pesquisas, ou da voz de especialistas sobre essas doenças, é um reflexo da invisibilidade. A leishmaniose é uma doença que acomete cerca de mil pessoas, por ano, aqui no estado de Rondônia, mas o que se vê sobre a doença na mídia? O que se produz de material jornalístico sobre isso? É muito pouco! A não ser em momentos muito específicos, como em campanhas de conscientização sobre o assunto. A malária é outra questão não resolvida. E o que se fala sobre a malária? Fala-se sobre os índices, sobre as pessoas que moram nas áreas de incidência. Mas uma doença não é somente o número de casos ou de pessoas acometidas. Existe toda uma conjuntura por trás disso, e as pessoas precisam saber. É preciso falar sobre a importância das estratégias de vigilância, dos investimentos na pesquisa e devolver à comunidade esses dados em informações que possam ser assimiladas. A dengue é outra doença comum na região, mas a sua comunicação muitas vezes fica restrita às orientações que todos já sabemos, que é preciso recolher o lixo do quintal, as tampinhas de garrafa, trocar a água dos vasos de plantas, além dos números que são altíssimos.

Por que isso acontece?

As redações não têm muito tempo para produzir matérias mais trabalhadas e divulgar outros tipos de informações, também essenciais, como projetos desenvolvidos dentro das escolas, ou por instituições de pesquisa. Vejo que as mudanças estruturais em muitas empresas de comunicação, por conta da pandemia, e a redução no número de profissionais, são fatores que vêm agravando esse processo de invisibilidade. Lembro-me de um projeto bem interessante realizado pela Fiocruz Rondônia, diretamente nas escolas, com estudantes da educação básica, em que os pesquisadores explicam didaticamente o ciclo de vida do Aedes aegypti. Isso precisa aparecer na mídia, e sabemos que essas crianças serão multiplicadoras desse conhecimento dentro de casa e com os amigos. Por isso acredito que a invisibilidade impacta no próprio gesto de autonomia do cidadão, ao impedir que ele tenha acesso às informações necessárias sobre como vencer, como combater, como se prevenir das doenças. Quando a imprensa, que é espaço de propagação dessas informações que educam, não trabalha isso junto à comunidade, ela colabora para o negligenciamento.

O que você pesquisa no curso de doutorado?

No doutorado, eu pretendo investigar como se dão os processos de construção de sentidos em textos da mídia jornalística, a partir de notícias veiculadas em telejornais de Rondônia e Amazonas, no contexto da pandemia de covid-19, considerando as condições de produção desses discursos e o contexto sócio-histórico dos sujeitos envolvidos. Minha proposta inicial é analisar os efeitos discursivos difundidos em reportagens e entrevistas de TV, especificamente, sobre a covid-19, tomando como recorte textos orais e escritos que tenham sido divulgados, durante a primeira e a segunda onda da doença, nesses dois estados. Acredito que terei muito chão a percorrer, e como representante do Norte no programa de pós-graduação do Icict/Fiocruz aumenta ainda mais a minha responsabilidade. [2]

[1] Foto: Acervo pessoal.

[2] Texto de Adriano de Lavor.

Como citar esta notícia: Fiocruz. “Os livros mostram uma Amazônia que não existe”.  Texto de Adriano de Lavor. Saense. https://saense.com.br/2021/05/os-livros-mostram-uma-amazonia-que-nao-existe/. Publicado em 26 de maio (2021).

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