Jornal da USP
13/05/2021

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Por Antonio Carlos Quinto, jornalista e subeditor de Ciências do “Jornal da USP”

As tecnologias de reconhecimento facial, infelizmente, têm prejudicado sobremaneira os negros. Comprovadamente, elas acabaram, em muitos casos, se tornando uma das ferramentas desse “racismo estrutural” que permeia a nossa sociedade. E constatar tal fato não é tarefa complicada. Basta listarmos aqui algumas notícias sobre o tema:

• Cerca de 90,5% das pessoas presas com uso de reconhecimento facial são negras – 21/11/2019 – veiculada no site Intercept
• Software de reconhecimento facial é banido na cidade de George Floyd – 15/2/2021 – Época Negócios
• Exclusivo: 83% dos presos injustamente por reconhecimento fotográfico no Brasil são negros – 21/2/2021 – G1

Nestas três notícias pode haver diferenças percentuais mínimas, mas o que elas têm em comum é o quanto os negros são prejudicados por essas tecnologias. Agora vejamos a notícia abaixo:

• Empresa brasileira promete 99% de precisão no reconhecimento facial de negros – 23/4/21 – Olhar Digital

“O reconhecimento facial é comprovadamente inferior para pessoas negras.” Assim começa a matéria que informa a inovação de uma startup brasileira, sediada no Rio de Janeiro, que promete maior precisão na tecnologia. De acordo com a notícia, “a empresa utilizou o banco de dados Racial Faces in the Wild (RFW), que possui mais de quatro milhões de rostos de diferentes etnias, para ajudar em estudos que comprovem o racismo algorítmico, que já foi culpado pela condenação de inocentes”.

Pois bem, fica clara nesta última notícia a tentativa de se corrigir algo equivocado, no caso os sistemas de reconhecimento facial que acabam sendo prejudiciais à população negra.

Mas não bastam correções aqui e ali. Ações mais efetivas devem ser incentivadas, como um recente curso do qual tive a honra de ter sido convidado a participar, atendendo a um convite do professor Ernane Xavier, diretor do Laboratório de Física Aplicada e Computacional (Lafac), da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP, em Pirassununga.

E foi com muita satisfação que participei do I Curso de Formação Antirracista no Direito e na Tecnologia, promovido pelo coletivo AqualtuneLab*, no início deste ano, e que teve a coordenação do professor Celso Eduardo Lins de Oliveira, do Laboratório de Eficiência Energética e Simulação de Processos (LEESP), da FZEA. Ernane Xavier realizou uma exposição sobre Inteligência Artificial e a professora Ana Carolina de Sousa Silva, também da FZEA, explanou sobre Reconhecimento e Processamento de Imagens. A palestra que abriu o curso foi do professor Celso Eduardo Lins, que falou sobre Algoritmos.

O coletivo AqualtuneLab foi criado por um grupo de juristas e é dedicado a “racializar discussões sobre temas que envolvem o uso da tecnologia”, como suas funções no sistema jurídico (vigilância pública e privada), políticas de proteção de dados, identificação biométrica e segurança na internet, aplicativos móveis e mídias sociais. E foi dentro desse contexto que pudemos acompanhar aulas e explanações que nos mostraram o quanto a população negra, de um modo geral, está alijada da tecnologia, mesmo que em seus ensinamentos básicos. Afinal, a desigualdade social somada a um racismo estrutural leva a tal situação, que pode ser considerada “catastrófica”. Assim, além do AqualtuneLab ser um coletivo que debate antirracismo, direito e tecnologia, também é “um espaço de aquilombamento”!

E quem sabe não esteja aí um dos caminhos para se tentar dissipar essas desigualdades: espalhar “quilombos digitais” Brasil afora. Nos debates e explanações, ficou clara esta necessidade. Afinal, a educação brasileira foi quase toda estruturada em matrizes eurocentristas. A verdadeira história da população negra, desde sua origem, ainda é por muitos desconhecida.

No perfil do Twitter do AqualtuneLab vem a informação de que a entidade, fundada em março de 2020, é um coletivo jurídico com suporte multidisciplinar, atravessando questões que comportam Direito, Tecnologia e Raça. “Buscamos compreender, através de um olhar jurídico qualificado e orientado na comunicação, TICs e áreas correlatas às intersecções entre tecnologia e raça, desconstruindo as armadilhas do racismo como estruturantes das relações de saber e poder no Brasil”!

Participar de algo dessa magnitude, além de gratificante, foi animador no sentido de que há muito por fazer nessa luta contra o racismo estrutural. Me senti como a bordo de um “cruzeiro de conhecimento”, mas com o sentimento de estar cercado, por todos os lados, por um “mar de desinformação” composto pela grande maioria da população negra que habita boa parte das periferias das grandes cidades. É preciso lançar boias e botes salva-vidas aos que estão se afogando e trazê-los a bordo do conhecimento para que enfrentemos de maneira cada vez mais igual toda essa perversa estrutura.

* Aqualtune foi uma princesa africana, filha do rei do Congo. No final do século 16, sua nação foi invadida por um grupo de mercenários e a princesa foi presa e levada para um mercado de escravos e, de lá, foi enviada para o Brasil. Chegou ao Recife em 1597. Foi uma líder quilombola à frente de um dos 11 mocambos do Quilombo dos Palmares, que resistiu ao regime colonial por cerca de 130 anos. Ela foi, segundo a tradição, a mãe de Ganga Zumba e avó materna de Zumbi dos Palmares.

Como citar este artigo: Jornal da USP. Quilombos digitais serão caminhos para a educação tecnológica inclusiva e justa.  Texto de Antonio Carlos Quinto. Saense. https://saense.com.br/2021/05/quilombos-digitais-serao-caminhos-para-a-educacao-tecnologica-inclusiva-e-justa/. Publicado em 13 de maio (2021).

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