Jornal da USP
10/06/2021
Por André Francisco Pilon, professor associado da Faculdade de Saúde Pública da USP
O Dia Internacional da Diversidade Biológica foi comemorado em 22 de maio. Conforme a ciência descreve, nosso mundo é uma teia de muitos fios, todos interligados. A diversidade é a condição para que diferentes organismos vivam juntos e tenham os genes certos para enfrentar os desafios existenciais e combater as doenças.
Ecossistemas saudáveis estão relacionados a um equilíbrio dinâmico entre todos os seres vivos. Os germes são organismos vivos que, por si sós, não são a causa principal da propagação de doenças, que ocorre devido à ruptura do estado de equilíbrio provocada por fenômenos adversos, hoje em dia pelas atividades humanas predatórias.
O consenso entre os cientistas revela que o aumento das doenças zoonóticas é causado pela perda de biodiversidade e pelas mudanças climáticas. Uso inadequado da terra e produção, comércio e consumo insustentáveis aumentam a frequência e a intensidade dos riscos associados à invasão da vida selvagem pelos processos ditos “civilizatórios”.
Os recursos financeiros e tecnológicos voltados para a imunização, por exemplo, deveriam ter, como contrapartida, a formulação e a urgente aplicação de políticas públicas destinadas à correção das assimetrias educacionais, culturais, econômicas, políticas e ambientais relacionadas às condições de vida da maior parte da população mundial.
A “economia”, restrita às atividades lucrativas, dificilmente levaria a uma mudança nas relações assimétricas de poder entre as pessoas comuns e as corporações de negócios; o “progresso”, como concebido e manipulado pelos principais atores políticos e econômicos, continuaria promovendo uma expansão urbana discriminatória.
Em nosso mundo globalizado, enquanto uma pequena parte da população usa o planeta como palco para incrementar sua situação política e econômica, a maioria da população carece das condições essenciais para prosperar como seres humanos: educação, saúde, saneamento básico, alimentação saudável, áreas verdes e espaços de convivência.
Apesar das políticas de inclusão social e dos marcos legais, as assimetrias estruturais continuam gerando o crime e a violência, a devastação natural, a perda de biodiversidade, a proliferação de epidemias fatais, de moradias insalubres, locais com más condições de saneamento, locomoção, trabalho, educação e diversos tipos de discriminação.
As propostas de “governança” deixam de levar em conta o desenho, formação, manutenção e falência das instituições, o papel dos líderes, elites e coalizões, a responsabilidade diferencial, a produção generalizada de vulnerabilidades de todos os tipos, as relações desiguais de poder nas decisões sociais e políticas que implicam a melhoria das condições de vida.
Poderiam os esforços de proteção de pessoas, animais, plantas, solo, biodiversidade e clima terem contrapartida política, econômica e cultural nas políticas voltadas para o controle efetivo do desmatamento, da devastação do solo, dos desastres da mineração poluente, da extração ilegal de madeira, dos agrotóxicos nas lavouras e alimentos ultraprocessados?
Na arena pública, “valores” e “necessidades” são manipulados pelos arautos da globalização, pela publicidade, celebridades, influenciadores e produtores das mensagens orquestradas pelos media de massa, que soem ignorar aspectos éticos e estéticos essenciais para a formação humana e que dão significado e sentido para a existência.
Uma civilização ecológica forma pessoas com capacidade crítica, não consumidores manipuláveis pelo mercado; as propostas de “sustentabilidade” não podem ignorar aspectos essenciais à formação humana (Bildung), a preservação do patrimônio cultural, os constituintes da qualidade de vida, como a arte, a arquitetura, a música, a literatura e as humanidades.
Recentemente, um movimento global (Culture2030goal) trabalha pela constituição da cultura como componente essencial e quarto pilar do desenvolvimento sustentável, apelando pelo seu reconhecimento, valorização e integração na agenda do desenvolvimento global, tendo em vista a interdependência socioecológica dos valores ambientais.
A recuperação da Terra e a recuperação da humanidade são aspectos complementares e devem ser tratados simultaneamente, no espaço e no tempo, para seu apoio mútuo. Os problemas ambientais devem ser definidos através de uma lente ecossistêmica integrada: a restauração da natureza não pode ser alcançada sem a restauração humana.
A implantação de máquinas e tecnologias não pode ser um substituto para a recusa em lidar com as causas contemporâneas da atual decadência das relações homem-natureza, caracterizada pela negação da conexão entre os problemas ambientais e os paradigmas de poder, riqueza, crescimento e desenvolvimento embutidos nas instituições vigentes.
A inteligência “artificial” seria a “solução final” para a decadência da inteligência “natural”? A intrusão e hegemonia de soluções tecnológicas e tecnocráticas em todos os domínios da vida, na verdade, obscurece a promoção de uma abordagem ecossistêmica, holística, integrativa e transformadora para os problemas de nosso tempo.
A questão vai além da mera sobrevivência, mas abrange a conservação e o desenvolvimento das qualidades que, ao longo da história, nos definiram como seres humanos, como a compaixão, a criatividade, os valores éticos e estéticos, atualmente ausentes das narrativas que alimentam a indignação pública, o medo e o “salve” a si mesmo (se puder).
[1] Imagem de Dirk Daniel Mann por Pixabay.
Como citar este artigo: Jornal da USP. A redenção da natureza e a redenção da humanidade: uma moeda de duas faces. Texto de André Francisco Pilon. Saense. https://saense.com.br/2021/06/a-redencao-da-natureza-e-a-redencao-da-humanidade-uma-moeda-de-duas-faces/. Publicado em 10 de junho (2021).